Criado em 1986, o Vídeo nas Aldeias foi um projeto precursor na área de produção audiovisual indígena no Brasil. O objetivo era apoiar a luta dos povos originários no fortalecimento das suas identidades assim como de patrimônios culturais e históricos. 

O antropólogo, indigenista e documentarista Vincent Carelli foi um dos criadores do projeto e se consolidou como um dos maiores nomes do cinema brasileiro. São deles verdadeiros clássicos como “Corumbiara” e “Martírio”. 

Agora, ele lança “Adeus, Capitão”, épico de três horas gravado ao longo de 25 anos. No filme exibido no Cine OP 2022 – Mostra de Cinema de Ouro Preto, acompanhamos a vida e legado do “Capitão” Krohokrenhum, líder do povo indígena Gavião (PA).  

Nesta entrevista para o Cine Set, Carelli fala sobre o foco dado pelo Cine OP ao cinema indígena, a necessidade de políticas públicas para o setor e a relação dele com Krohokrenhum. 

Cine Set – Como indigenista, cineasta, pesquisador e professor de cineastas indígenas, como você analisa a Mostra de Cinema de Ouro Preto 2022 voltada para a preservação, educação e memória homenageando o cinema indígena? 

Vincent Carelli – Cumprimento o Cine OP com muito entusiasmo por colocar o cinema periférico, no caso, o cinema indígena no centro da cena. Isso porque o mundo do cinema e o mundo do cinema indígena estão muito distantes. Uma obra genial como “Bicicleta de Nhanderú“ foi produzida em 2012, mas, muita gente só foi conhecer na praça aqui de Ouro Preto.   

Falando outro dia com um organizador de festival, fiquei feliz dele ter relatado que não dá mais para produzir um evento de cinema sem ter um componente indígena. Admito que esperei muito tempo para ouvir isso. Vejo um reconhecimento para além do audiovisual desta maior abertura aos povos originários, seja na literatura infantil ou nas artes visuais como ocorreu na Bienal influenciado, infelizmente, pela trágica morte do Jaider Esbell.  

Pode-se observar também o surgimento de jovens cineastas interessados em colaborar com novas experiências e formar grupos. Durante muitos anos, recebíamos contatos de indígenas querendo participar do ‘Vídeo nas Aldeias’, mas, ela é uma ONG pequena que, é verdade, fez muita coisa de formação continuada para alguns povos, porém, sempre com bastante dificuldades e poucos recursos. “Não temos pernas”, era o que dizíamos, pois, realmente não tínhamos como atender a todos. Orientávamos a procurar universidades, parceiros locais e eles foram à luta. Hoje, notamos que, em todas as partes do Brasil, há pessoas filmando, construindo narrativas próprias. Isso é incrível.  

As novas gerações estão cientes e angustiadas diante desta crise civilizatória, da tragédia ambiental já acontecendo e olham para os povos indígenas notando outras formas de estar no mundo, de se relacionar com a natureza e o planeta. Isso desperta interesse. Quando comecei, o mundo indígena era um apartheid controlado por dois, três mil funcionários de pretensão militaresca, impedindo o ir e vir desta população assim como o contato do povo brasileiro em ter um diálogo e convívio com eles. Isso acabou. 

Próximo ao final do governo Dilma, a Ancine nos procurou para formar um plano de maturação de política de Estado específica para o cinema indígena, iniciando com um mapeamento desta produção seguido por um portal para dar visibilidade a estas obras, facilitando o acesso – hoje, os próprios realizadores postam no YouTube de forma muito fragmentada. Depois, passaria para a etapa de editais de oficinas de formação e produção, resultando em séries para as TVs Públicas. O Fundo Setorial do Audiovisual estava neste embalo e, infelizmente, com os retrocessos do país, muita coisa acabou engavetada. 

Cine Set – Diante disso, como transformar esta estrutura para não ficar tão refém de mudanças profundas como vemos no Governo Federal? 

Vincent Carelli – Já existem festivais de cinema indígenas no Brasil, mas, de pouco alcance, afinal, a verba é curta para produzir. São importantes, mas, não ganharam escala, algo que virá pelo aumento da produção.  

Neste momento, claro, está tudo muito difícil, mas, acho que a recriação do Ministério da Cultural e da Secretaria do Audiovisual assim como a reconstrução do país de forma geral poderá ser um novo norte. 

Cine Set – Falando agora do “Adeus, Capitão”, o senhor levou um grande período acompanhando o Capitão Krohokrenhum, liderança icônica do povo Gavião, no Pará. Como você analisa todo o processo de realização do documentário? Também gostaria que falasse do legado deixado pelo Vídeo nas Aldeias. 

Vincent Carelli – Minha referência quando faço um filme está sempre nos povos indígenas, sempre me perguntando ‘o que posso dizer’, ‘como devo dizer’. Eles são o meu primeiro público. “Adeus, Capitão” é um filme devolução. A decisão de ter três horas de duração é porque cada momento histórico daquele povo é importante. 

No É Tudo Verdade, onde exibimos o filme durante uma semana, à medida em que a narrativa do Capitão se desenrolava e a contextualização era apresentada, ficava visível o impacto nos jovens, como se fosse um tapa na cara. Todos perceberam como ele era um sujeito icônico. 

Quando eu mostrei a câmera e a experiência com os Nambikwara – que, ao produzirem as suas novas imagens resolveram fazer a furação do beiço, uma tradição então abandonada – o Krohokrenhum viu nisso o caminho para a reconstrução da memória de seu povo. Durante 10 anos, fui o cinegrafista dele para realizar registros dos cantos inteiros, da historiografia, as narrativas, as festas. Trata-se de um arquivo de memória.  

Antes dele morrer por conta de uma tuberculose terminal, ele falou para a filha: “liga para o Vincent”. Entendi o recado na hora: peguei um avião e fui para o Pará. Filmei a morte dele, o enterro, o fim do luto um ano depois, fazendo esta devolução agora. Era um compromisso nosso. Logo, “Adeus, Capitão” é, antes de tudo, um filme para o povo Gavião, uma devolutiva construída a pedido do Capitão. 

Sobre o Vídeo nas Aldeias, observo que hoje houve um salto com os próprios indígenas produzindo seus materiais. Além de cineastas, há também os comunicadores indígenas. A APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), por exemplo, tem uma equipe indígena multiétnica, o que demonstra a força cada vez maior da mídia indígena que usam as redes sociais a seu favor. 

Entrevista concedida na Mostra de Cinema de Ouro Preto.