Nascida em meio às películas, câmeras de gravação e ambientes da Cinédia, um dos primeiros grandes estúdios cinematográficos brasileiros, a restauradora, produtora e arquivista Alice Gonzaga reconta que trabalha arquivando obras e documentos audiovisuais desde que tinha seis anos de idade.  

Aos 87, a filha do fundador da Cinédia, Adhemar Gonzaga, foi figura fácil em todas as sessões e programações da CineOP, sendo convidada de honra desde as primeiras edições.  

Sempre solícita, Alice esbanja disposição e engaja uma conversa fácil sobre um assunto que adora: a história do cinema, em especial do estúdio da família ou sobre a carreira da grande amiga e uma das grandes cineastas de todos os tempos, a mulher por trás de sucessos como “O Ébrio”, Gilda de Abreu. 

Cine Set – Como a senhora observa a preservação da história do audiovisual brasileiro? Sente que isso é visto como importante no país? 

Alice Gonzaga – A memória do cinema brasileiro merecia mais verba e atenção por parte das autoridades. Atualmente, sustento um arquivo da Cinédia em uma casa de 1850 com filmes e acervo documental imensos. Tudo isso com despesas mensais consideráveis de manutenção. 

A demora no processo de digitalização acaba sendo um problema, pois, quando, finalmente, conseguimos converter para uma determinada mídia, ela já ultrapassada por uma mais moderna. Neste momento, estou com os filmes da Cinédia em HD e, agora, preciso lutar para transformar em 4K. 

Infelizmente, as emissoras de televisão não exibem mais os filmes antigos, em preto e branco, principalmente, dos anos 1930 e 1940. Quando desejam exibir, querem ficar com os direitos do filme em contratos leoninos, logo, é uma situação bastante complicada. Uma obra da Cinédia jamais consegue espaço em uma Netflix – e olha que produções como “O Ébrio” e “Alô, Alô Carnaval” tinham condições totais de serem exibidos lá. Hoje, nosso espaço de exibição é na Cinemateca e há quatro filmes da Cinédia no canal Curta.  

Gilda de Abreu foi diretora do clássico “O Ébrio”.

Cine Set – Fale um pouco sobre “O Ébrio”, maior sucesso comercial da Cinédia com mais de 2 milhões de espectadores para os cinemas e dirigido e roteirizado por uma mulher, a Gilda de Abreu. 

Alice Gonzaga – Na verdade, “O Ébrio” teve público de 12 milhões. É o filme mais visto da história do cinema brasileiro. Foi uma produção muito roubada e, com isso, deixou de ser contabilizada bastante coisa, mas, tenho caixas e caixas de borderôs dele. 

Sobre a Gilda, ela realmente dirigiu muito bem o filme. Durante as gravações, era muito exigente com toda a equipe a ponto deles não a suportarem mais (risos). “O Ébrio”, aliás, foi feito por acaso, pois, o meu pai não pretendia produzi-lo. A Gilda inicialmente veio com a ideia de realizar uma história de época chamada “A Viuvinha”, porém, era muito caro por conta dos figurinos, o que assustou meu pai até por conta do prejuízo recente provocado por “Alegria” que quase faliu a empresa e ficou inacabado. 

O ator português Miguel Oriz, então, sugeriu a adaptação de “O Ébrio”, peça que estava fazendo um grande sucesso na Praça Tiradentes. Meu pai chamou a Gilda e disse que iria trocar o projeto e ela seria a diretora com o marido, o Vicente Celestino, atuando. Isso a agradou porque o Vicente tinha sido barrado no “Bonequinha de Seda” (1936), no qual ela era a protagonista. 

Cine Set – “Bonequinha de Seda” foi a estreia da Gilda nos cinemas. 

Alice Gonzaga – Sim, ela estreou como atriz e ajudou bastante o Oduvaldo Viana a dirigir o filme. Ela comandou as cenas dos bailes no final, por exemplo. Curioso que ela reclamava bastante nos bastidores de “O Ébrio” sobre a equipe, a Cinédia, de falta de apoio a ponto de dizer que não faria mais nada conosco. Já em “Pinguinho de Gente” (1949), a Gilda pode gastar bastante. Foi o filme mais caro até então feito no Brasil; a Cinédia chegou a importar uma máquina de fazer neve. 

Porém, tempos depois da experiência de realizar “Coração Materno” (1951), fora da Cinédia, em que foi a diretora e produtora tendo um enorme prejuízo, ela confessou ao meu pai que ele estava certo. 

Cine Set – De qualquer maneira, a Gilda foi e é uma figura fundamental para o cinema brasileiro. 

Alice Gonzaga – Sem dúvida. Era uma grande diretora. Tem um filme da Cinédia chamado “Mãe” (1951) que, se ela tivesse comandado, seria um outro “O Ébrio”. A Gilda era uma artista popular, especialista no melodrama. Uma curiosidade é que ela chegou a cogitar fazer a continuação do “O Ébrio” com o Juca de Oliveira no lugar do Celestino, mas, a ideia não andou para frente. 

Cine Set – É verdade que a Gilda contratava mulheres para trabalhar ao lado dela? 

Alice Gonzaga – Isso ocorreu quando ela fez o “Coração Materno” e assumiu toda a produção. Já na Cinédia, havia a própria equipe da companhia. O braço-direito da Gilda era a Arlete Lester que merece um grande estudo do cinema brasileiro. Arlete era maquiadora, atriz, continuísta, assumia todas as funções. 

Pai de Alice, Adhemar Gonzaga era o nome forte da Cinédia.

Cine Set – Dentro do mundo de fantasia e sonhos na Cinédia, onde a senhora cresceu, como foi atuar, produzir e, agora, atuar na distribuição e preservação destes filmes? Foi o destino ou vocação? 

Alice Gonzaga – As coisas foram acontecendo. Minha mãe era atriz e se juntou com o meu pai, na época, desquitado para descontentamento da minha avó. Isso acabou com a carreira da minha mãe, pois, como ela tinha este relacionamento com um dono de estúdio, não podia trabalhar nos filmes por questões de política interna, fora o preconceito com quem se envolvia com uma pessoa desquitada nos anos 1920 e 1930.  

Quando nasci, pensaram que seria uma atriz. Na separação deles, eu fui levada para um colégio interno justamente para não seguir esta profissão, mas, nas férias, durante as horas vagas, eu ia para a Cinédia ajudando meu pai nos arquivos. 

Hoje em dia, atuo com um pouco de tudo. Posso não estar na lista de roteiristas ou diretoras mulheres que se costuma ter, porém, o meu trabalho – publicação de livro, restauro e preservação de acervo – ninguém faz.  

Cine Set – Falando no seu pai, ele era um homem muito obcecado pelo cinema, não? 

Alice Gonzaga – Com certeza. Agora, trabalhando na biografia dele, a noção de que a vida dele era o cinema fica ainda mais nítida.

Ano que vem, provavelmente em março, o livro será lançado. Já está pronto. Se não tiver editora, eu mesma vou bancar. 

Cine Set – Como espectadora e alguém que já fez filmes, qual o diferencial do cinema brasileiro? 

Alice Gonzaga Nosso cinema é único e cheio de facetas. Você tem o Amazonas, Minas Gerais e todos os demais Estados com seus aspectos e paisagens para fazer o Cinema Brasileiro.  

Meu pai procurou fazer um cinema brasileiro de estúdio; certos filmes como “Eterna Esperança” chegaram a ser realizados em externas, mas, por conta de problemas para conclusão contaram com o apoio da Cinédia para serem finalizados. 

Por outro lado, isso fez com que meu pai não conseguisse realizar os filmes que queria, pois, ou você comanda o estúdio ou você produz o filme. 

Cine Set – O Adhemar Gonzaga chegou a se arrepender em ser dono de estúdio? 

Alice Gonzaga – Não, em momento algum. Se você for analisar qualquer coisa, é preciso levar em consideração o contexto em que foram feitas.

Certo dia, o biógrafo responsável pelo livro me chamou a atenção ao dizer o seguinte: “Alice, você já pensou que o seu pai naquela época era um empresário, dono de um estúdio com muitos funcionários, no Rio de Janeiro aos 29 anos de idade? Qual era o rapaz que tinha o que ele tinha? Poucos”.

Isso tudo está na biografia que, espero, um dia se torne um filme. 

Cine Set – A senhora é protagonista do documentário “Desarquivando Alice Gonzaga”, de 2017 dirigido pela Betse de Paula. Como estar na frente das câmeras?  

Alice Gonzaga – Inicialmente, a Betse conversou comigo sobre a ideia de fazer um filme sobre a vida do meu pai. Porém, a história era muito doida com ele sendo amante da Gilda, o que nunca existiu. A proposta acabou não indo para frente. Tempos depois, durante um festival de cinema em Anápolis, ela chegou falando do desejo de fazer um filme sobre mim. Pensei: “esse filme não vai sair nunca mesmo” (risos). Disse que faria sim. 

Passou um ano e ela me telefona: “Alice, vamos fazer o filme mesmo”. Respondi com a primeira desculpa que passou pela cabeça: “ah, Betse, vou arrumar meus dentes, vou arrumar meu cabelo, etc, etc”. Ela, então, focou no término de um documentário sobre o Edgar Brasil e deixou em suspenso.  

Neste processo, a Betse precisava de imagens do Edgar disponíveis na Cinédia. Na primeira visita, ela foi sozinha, mas, na segunda, veio a equipe toda pronta para me filmar. Não desconfiei. Acabou que dei a entrevista e gostei mesmo sem ter roteiro nem nada. 

Deixei nas mãos dela sem dar palpite. Só fui assistir na versão final e pronta. O filme ficou ótimo porque ela conseguiu juntar eu, meu pai e a Cinédia em uma coisa só.

Aliás, acho meu filme ótimo para ser exibido em escolas. 

Cine Set – Como é hoje sua rotina no casarão da Cinédia? 

Alice Gonzaga O arquivo está em dia, todo arrumado. Quando encontro algum material, já o coloco dentro da nossa organização pré-estabelecida. Pesquiso também o que está na internet. Mantenho o anual do cinema brasileiro, o que acontece no dia a dia e sai em jornais.  

Tenho um “armário dos problemas” onde coloco fotos que precisam ser identificadas. Trabalho também em um material sobre censura com arquivos existentes desde 1905. Naquela época, as autoridades achavam que a censura deveria educar.  

Pelo cansaço, hoje em dia, passo sete até 10 dias longe do casarão, mas, sempre resolvendo as coisas através de emails e pesquisando online. Quando volto está cheio de coisas para arquivar. Gosto do que eu faço. 

Entrevista realizada na cobertura da Mostra de Cinema de Ouro Preto 2022.