Pode um assassinato ser algo bonito? Digamos, ter valor estético e ser passível de admiração artística? Bem, no cinema, pelo menos? Se perguntarmos ao cineasta italiano Dario Argento, ele provavelmente responderia sim. O diretor, que pôs nas telas algumas das cenas de assassinato mais criativas e impactantes do cinema de terror, é um verdadeiro esteta da tela grande. Tudo em seus filmes ocorre em função da imagem – nos filmes de Argento, até um roteiro bem amarradinho é menos importante do que uma cena visualmente poderosa. E este ano um dos seus melhores trabalhos, Prelúdio para Matar, celebra seu 40º. aniversário de lançamento. É a oportunidade perfeita para celebrar este arrepiante clássico do terror europeu.

Logo no começo de Prelúdio para Matar, a câmera de Argento penetra dentro de um salão de convenções – penetra mesmo, passando por dentro de cortinas de um vermelho absolutamente vivo. Lá dentro, os palestrantes falam sobre mediunidade, e a médium Helga Ulmann (Macha Méril) fica abalada ao afirmar que está captando a mente de um assassino na plateia. Alguém que pretende matar de novo… Naquela mesma noite, ela é assassinada. O pianista inglês Marcus Daly (David Hemmings) testemunha o crime e aos poucos, para seu horror, se torna também alvo do assassino, cujo rosto ele não conseguiu ver. Daly começa a investigar o caso com a ajuda da repórter Gianna (Daria Nicolodi), e os dois passam a correr risco de vida.

Percebe-se que Prelúdio… na verdade não é muito diferente de dezenas de outros giallos, pelo menos do ponto de vista do roteiro. O que faz do filme algo especial é justamente a direção de Argento, aqui no auge dos seus “poderes visuais”. Argento cria enquadramentos estranhos, ora filmando em closes intensos; ora do alto para baixo ou em contra-plongée. A fotografia enfatiza as cores, tornando-as fortes, e certas cenas, sem exagero, parecem pinturas: a praça onde Marcus e seu amigo Carlo (Gabriele Lavia) se encontram na noite do crime parece um cenário de um filme de Fellini, cinzenta e com uma fonte e uma estátua. Ao lado da praça, um bar modelado na famosa pintura Nighthawks, de Edward Hopper. Aliás, falando em pinturas, o filme é tão visual que a resolução do mistério da identidade do assassino é revelada de passagem, por um quadro numa parede, visto numa sensacional cena num corredor. Ou seja, até a essência do mistério do filme depende, sobretudo, do que o protagonista e o espectador veem.

E o sangue… Raramente se viu no cinema um de uma coloração tão viva – de fato, é até sobre ele que os créditos aparecem ao final. A cor vermelha possui destaque nas cenas de flashback que aparecem ao longo da história, nos brinquedos da imaginação infantil do assassino, num rabisco de criança escondido na parede de uma casa velha…

A imaginação visual de Argento se estende também às cenas dos assassinatos. Apesar de possuírem um toque de exagero, eles partem de situações comuns, como se queimar com água quente ou topar contra um móvel de casa. E até as aparições do assassino são criativas: em dado momento Argento nos mostra apenas um olho dele aparecendo em meio à escuridão. Como sempre, as mãos enluvadas que esfaqueiam ou seguram as vítimas nessas cenas pertencem ao próprio diretor, e cada uma delas possui um toque macabro completamente único: um boneco visto numa das mortes parece ser o ancestral do boneco do Jigsaw em Jogos Mortais, e as últimas mortes do filme até possuem um viés cômico.

Esse surpreendente toque de humor transparece, sobretudo, nas atuações do elenco. Hemmings, por exemplo, parece estar se divertindo muito e nem se importar com o fato de estar praticamente repetindo seu personagem de Blow-Up: Depois Daquele Beijo (1966), o clássico de Michelangelo Antonioni. A veterana Clara Calamai, lembrada por seus papéis em filmes de Luchino Visconti, é outra que se diverte, assim como Daria Nicolodi, que com sua presença de cena esquisita, faz da sua repórter assanhada um perfeito contraponto ao herói de Hemmings – Daria e Dario se conheceram nesta filmagem e ficaram juntos por anos, e tiveram uma filha, a também atriz e diretora Asia Argento.

O filme não é perfeito, porém. Algumas cenas se estendem além do necessário e outros momentos de alívio cômico, no fim das contas, não funcionam. A trilha do grupo Goblin é efetiva em alguns momentos, barulhenta em outros – no trabalho seguinte do diretor, o também clássico Suspiria (1977), a colaboração entre Argento e o Goblin atingiria uma simetria perfeita; aqui, porém, há acertos e erros. E o roteiro é meio inconsequente e a história, no final das contas, é bizarra – embora, verdade seja dita, Prelúdio para Matar é, dentre os filmes de Argento, um dos que menos sofre com problemas de roteiro. Tudo faz sentido neste filme, mas de um jeito distorcido e maluco, como num pesadelo. Afinal, o personagem Carlo diz, meio bêbado, que “aquilo que se vê e o imaginado se misturam na mente, como um coquetel” – outro eco de Blow-Up em Prelúdio para Matar.

Nos filmes de Dario Argento, o importante é embarcar na viagem. Às vezes seus delírios resultam em filmes menores; às vezes o resultado é sublime. Prelúdio Para Matar é um raro filme de terror que é tão bonito quanto horrível, e é da convivência entre essas duas estéticas que o filme retira sua força. E poucas vezes um título de um filme resumiu tão bem a obra de um diretor. Esqueça o título nacional, que não significa nada: o título italiano do filme é Profondo Rosso, ou Vermelho Profundo. Essa é a cor do cinema de Argento.