8 de maio marca o início da 71ª edição do Festival de Cannes, um dos mais tradicionais eventos de cinema no mundo. A julgar pela imagem que se faz da Europa como um continente “evoluído”, era de se esperar que o festival trouxesse, culturalmente, uma atmosfera de vanguarda para além da escolha dos filmes em si.

E como a onda do momento são as discussões sobre representatividade e luta contra a cultura de assédio na indústria cinematográfica, seria bastante natural a questão vir à tona justamente na França, um país marcado pela efervescência de debates político-sociais. Mas quando se fala do tratamento da mulher, Cannes prova que não é bem assim.

Avaliando os últimos cinco anos de festival, percebe-se que uma busca por seleções que equilibrem qualidade e paridade de gênero é praticamente inexistente nas categorias mais chamativas, aquelas capazes de alavancar carreiras de filmes e diretores, como, por exemplo, a que rende a Palma de Ouro a um longa. Em 2012, por exemplo, uma carta aberta já dava conta de que 100% dos filmes em competição foram dirigidos por homens.

A carta dá conta ainda do “atípico” 2011, no qual quatro mulheres exibiram filmes em competição: Naomi Kawase (com Hanezu), Maïwenn (com Polissia), Julia Leigh (com Beleza adormecida) e Lynne Ramsay (com Precisamos falar sobre o Kevin). Esse foi o máximo que o evento contabilizou em um ano desde 1932.

Outro dado relevante é que Cannes consegue tão ou mais díspar que o Oscar nesse setor, sendo que o evento é vendido como algo que leva a qualidade intrínseca das obras muito mais a sério. A provocação colocada na carta sumariza bem uma incômoda interpretação possível de tamanha desigualdade: “os homens gostam de profundidade nas mulheres, mas apenas no decote”.

UMA CURTA HISTÓRIA

Até hoje, Jane Campion permanece a única diretora que já ganhou o prêmio de melhor filme no evento, com o longa O piano (The piano, 1993). Em 2009, quando ela teve o filme O brilho de uma paixão (Bright star) na seleção do festival, a diretora criticou a falta de incentivo na carreira das mulheres no cinema, ainda que não tenha se endereçado ao evento explicitamente.

Antes de Campion, Yuliya Solntseva levou o prêmio de direção em Cannes por A Epopéia dos Anos de Fogo (Povest plamennykh let), em 1961. O feito foi repetido por Sofia Coppola em 2017, com O estranho que nós amamos (The Beguiled). Excetuando-se os prêmios de atuação, a história das mulheres cineastas no Festival de Cannes tem nessas três figuras toda a sua representatividade nas categorias principais.

Voltando para 2012, a diretora britânica Andrea Arnold se expressou abertamente sobre o fracasso de Cannes em indicar algum filme dirigido por mulher naquele ano, gerando ainda mais controvérsia. Ela, que também participou do júri da Palma de Ouro, lamentou o fato frisado pela carta aberta do grupo feminista La Barbe.

Em 2013, um artigo da crítica e curadora Melissa Silverstein para o site Indie Wire apontou outra discrepância maluca de Cannes. Naquele ano, apenas um filme dirigido por mulher estava em competição, Um castelo na Itália, de Valeria Bruni Tedeschi. No entanto, oito filmes de diretoras foram alocados na mostra Un certain regard, não competitiva e menos importante dentro da hierarquia do festival: Bling Ring: A Gangue de Hollywood (Sofia Coppola); Bastardos (Claire Denis); O médico alemão (Lucía Puenzo); Nada de mal pode acontecer (Katrin Gebbe); Bends (Flora Lau); Grand Central (Rebecca Zlotowski); Miele (Valeria Golino); Sarah préfère La Course (Chloé Robichaud). Ficou o questionamento: será que realmente nenhuma delas poderia estar concorrendo naquele ano?

Em 2014 houve a tentativa fracassada de retorno à média de participação das mulheres na mostra competitiva, com duas diretoras: Naomi Kawase (com o filme O segredo das águas) e Alice Rohrwacher (com As Maravilhas). Na mostra Un certain regard, apenas cinco obras de mulheres.

Nada de novo no front, como bem apontou a presidente do júri daquele ano, Jane Campion, que novamente destacou a disparidade. De maneira capciosa, o festival parece ter buscado equilibrar (ou mascarar) isso com a escolha de mulheres no júri, tal como foi em 2014, em que Campion teve a companhia das atrizes Leila Hatami, Carole Bouquet e Do-yeon Jeon, além da diretora Sofia Coppola como juradas.

O fato de que só 7% dos filmes enviados para o festival foram de mulheres, com 20% do total de filmes exibidos no evento tendo sido dirigido por uma também ajuda a camuflar as oportunidades desiguais no festival.  Jane Roscoe, diretora da London Film School, resumiu bem a questão quando declarou na época que o júri predominantemente feminino de 2014 não disfarçava a realidade da indústria cinematográfica, um bastião dos homens.

2015 trouxe alguns dados dignos de nota na história delas em Cannes. Nesse ano, Agnès Varda recebeu uma Palma de Ouro honorária, coroando sua irrepreensível (e nem sempre tão reconhecida assim) carreira. Nesse ano também foi exibido um filme de abertura dirigido por mulher: De Cabeça Erguida (La Tête haute), de Emmanuelle Berçot. Isso não acontecia desde 1987, quando Diane Kurys apresentou seu Un homme amoureux.

Na correlação entre competição principal e mostra Un certain regard, permaneceu a tendência a dar um pouco mais espaço para as mulheres apenas nos espaços periféricos do festival: foram dois filmes na primeira (Meu rei, de Maïwenn, e Marguerite & Julien: Um Amor Proibido, de Valérie Donzelli) e quatro filmes na segunda (Madonna, de Shin Su-won, Nahid, de Ida Panahandeh, Maryland, de Alice Winocour, e Sabor da vida, de Naomi Kawase).

Quando cruzamos a questão da mulher com o Festival de Cannes em 2015, vem à memória uma nota de rodapé que quase nada tem a ver com cinema. Foi nesse ano que circulou o burburinho de que elas não poderiam comparecer às sessões de gala do evento sem salto alto. O heel gate gerado pela fofoca sobre os calçados femininos foi tanto que o diretor do festival, Thierry Fremaux, teve que se pronunciar sobre o assunto, afirmando que tal obrigatoriedade não existia.

O assunto dos sapatos rendeu até 2016, quando Julia Roberts revelou estar descalça no tapete vermelho do filme Jogo do Dinheiro (Money Monster), dirigido por Jodie Foster e estrelado por ela. Dentre os filmes, Docinho americano, de Andrea Arnold, levou o Prêmio do Júri, enquanto que duas excelentes obras dirigidas por mulheres (Raw, de Julia Ducournau, e Toni Erdmann, de Maren Ade) saíram com prêmios da FIPRESCI, a Federação Internacional de Críticos de Cinema. Ade, aliás, compôs o júri do festival no ano seguinte. De maneira geral em todas as mostras, o 50-50 chegou mais próximo de ser alcançado.

2017 foi o fatídico ano em que Sofia Coppola venceu o prêmio de melhor diretora com O estranho que nós amamos. Competiam com o filme dela ao prêmio principal 16 homens e duas mulheres: Lynne Ramsay, com o longa You were never really here e Naomi Kawase, com Esplendor. Fora de competição, o belo Visages, Villages, de Agnès Varda figurou nesse ano, destacando-se também os episódios iniciais da série Top of the lake, de Jane Campion e Ariel Kleiman, numa exibição comemorativa dos 70 anos do festival.

Os destaques não diminuem o impacto que um dos membros do júri daquele ano, a atriz Jessica Chastain, disse ter sentido ao ver “20 filmes em 10 dias” de festival. Ela afirmou ter se sentido assustada por como elas eram representadas nos filmes em geral, destacando a necessidade de mais roteiristas mulheres para mostrar figuras que tem seu próprio ponto de vista, ao invés de simplesmente reagirem aos dramas e motivações masculinas.

E 2018? O QUE PROMETE?

Um destaque nas notícias sobre Cannes 2018 é o júri predominantemente feminino na competição principal: são cinco mulheres (Cate Blanchett, Ava DuVernay, Khadja Nin, Lea Seydoux e Kristen Stewart) e quatro homens (Chang Chen, Andrei Zviaguintsev, Denis Villeneuve e Robert Guédiguian). O comunicado oficial do evento ainda destaca que essa seleção representa sete nacionalidades de cinco continentes.

Capernaum (Nadine Labaki), Les filles du soleil (Eva Husson) e Lazzaro Felice (Alice Rohrwacher) são os três filmes de diretoras a concorrerem à Palma de Ouro este ano, de um total de 18. Na Un certain regard, serão 12 filmes deles e seis filmes delas: Gueule d’ange (Vanessa Filho), Euforia (Valeria Golino), Les Chatouilles (Andréa Bescond, co-dirigido com Eric Métayer), Manto (Nandita Das), Mon tissu préféré (Gaya Jiji) e Sofia (Meryem Benm’Barek-Aloïsi). Nas seções de Semana da crítica, um destaque: dos sete filmes a serem exibidos, cinco são de mulheres. São eles: Chris the Swiss (Anja Kofmel), Egy Nap (Zsófia Szilágyi), Fuga (Agnieszka Smoczyńska), Sauvage (Camille Vidal-Naquet) e Monsieur (Rohena Gera).

Neste ano, a seção Cannes Classics exibirá também uma produção importante para resgatar a importância da mulher na trajetória do cinema. Trata-se do documentário inédito Be Natural: The Untold Story of Alice Guy-Blaché (2018)de Pamela B. Green. O filme abordará a carreira da inventora do cinema narrativo e uma das primeiras mulheres a ter uma companhia cinematográfica na virada do século XIX para XX.

Vale lembrar que essa será a primeira edição do Festival de Cannes depois de estourada a bomba Harvey Weinstein e seus desdobramentos na indústria cinematográfica. O produtor, que já foi considerado informalmente o “rei da Croissette”, tem pelo menos duas acusações de agressão sexual e cinco de assédio que tiveram festas do festival como pano de fundo desde 1996. Fremaux em pessoa se endereçou à ligação entre Weinstein e o evento ao declarar que “nada será como antes” após a repercussão do caso ter levado a tantos debates sobre o papel da mulher no cinema. Se isso se refletirá em chances mais igualitárias de concorrer (e ganhar) prêmios, só o futuro dirá.