Na seção do Cine Set dedicada às diretoras mulheres, o foco é o novo documentário de Liz Garbus sobre a cantora Nina Simone, diva absoluta da música negra.

A diretora Liz Garbus chamou a atenção há alguns anos atrás com o seu “Love, Marylin” (2012), um documentário sobre Marylin Monroe que trazia relatos do diário da atriz e depoimentos que compunham um quadro complexo de quem ela realmente foi. Nesse filme, o esmero na pesquisa de arquivo e produção salta aos olhos do espectador e são essenciais para compor a atmosfera intimista do filme. Com o novíssimo “What Happened, Miss Simone?”, ela busca ampliar esse efeito, sem o mesmo sucesso.

Que fique claro desde o início: o documentário sobre a cantora Nina Simone é muito interessante. Sua personagem tem uma trajetória de vida rica e talento ímpar na música, o que deu a Garbus vasto material para o filme. Relembrar sua infância pobre numa das regiões mais racistas dos Estados Unidos nos anos 1930-1940 é, por si só, um aula de história, e Garbus introduz essas memórias de forma interessante, pontuando-as no início do documentário, mas também em momento posterior, quando aborda a ligação da cantora com o ativismo dos direitos civis dos afro-americanos.

Uma das características mais interessantes do ponto de vista do uso da linguagem fílmica em “What Happened, Miss Simone?” é o fato de que a montagem de evidência, expositiva, foi escolhida pela diretora, mas apresenta camadas mais profundas. Logo no início do filme, quando apresenta ao espectador quem foi a americana negra e sulista treinada como pianista clássica que mudou as regras da música popular americana, essa montagem deixa claro que não está ali apenas para seguir a voz de Nina Simone nos inúmeros áudios de entrevistas.

Ao invés do filme se calcar nesses offs e entrevistas para guiar as imagens, naquele modelo que já vimos inúmeras vezes na televisão, Garbus escolhe intercalar as músicas mais conhecidas de Nina Simone às falas de familiares, amigos e da própria cantora. Dessa maneira, canções e imagens ganham nova dimensão a partir da ressignificação das músicas, num engenhoso trabalho de edição. E que canções! Estão presentes as belas “I Loves You, Porgy”, “Mississippi Goddam“, “Strange Fruit”, “To Be Young, Gifted and Black”, “Ain’t Got No/I Got Life“, dentre outras. É uma ótima sacada para enriquecer o filme como um todo e garantir o fôlego do documentário, gênero que não raro exige mais do espectador.

A (amarga) cereja do bolo

A visita aos diários de Nina Simone são colocadas como a cereja do bolo de “What Happened, Miss Simone?”. No entanto, salvo raros momentos, as inserções de imagens desses diários não criam a mesma atmosfera tão intimista de “Love, Marylin”. O documentário de Garbus foi vendido como um verdadeiro tour de force que destrincharia a alma de uma artista ao mesmo tempo transtornada e genial, mas ela parece ter se fiado demais no material que tinha em mãos, mas não tanto para a ordenação dele dentro do todo do filme.

A situação se complica quando começam os relatos do relacionamento de Nina Simone com Andrew Stroud entre 1960-1970. Ex-agente de polícia e depois empresário da cantora, Stroud a violentava fisicamente com frequência, como bem relembra ela própria e amigos próximos que surgem na tela.

O mais chocante na escolha de Garbus enquanto diretora foi inserir longas falas do próprio Stroud sobre o tema, retiradas de entrevistas que datam de 2000. Ele recorda calmamente as surras, cenas de ciúme e até mesmo de agredi-la em frente à filha, Lisa Celeste Stroud. A postura da diretora ao escolher essas imagens lânguidas do agressor chega a ser tão perturbadora e eticamente questionável quanto os relatos em si. Nas falas dos entrevistados, muito provavelmente alguém deve ter questionado de maneira mais firme a atitude de Stroud, mas nunca saberemos, porque a diretora parece ter escolhido conscientemente passar batido por toda essa questão.

Não bastasse isso, Garbus opta por inserir, em dado momento, um trecho do diário de Nina Simone no qual, de forma descontextualizada, lê-se que ela gostava de apanhar e que merecia isso. Em momento algum Garbus problematiza a questão, ainda que em falas de entrevistados, sobre como a cantora se encontrava em condição delicada, uma vez que o marido detinha o controle de toda a sua carreira, nem pontua como esse posicionamento é uma espécie de justificativa comum entre vítimas de violência doméstica.

Como se esse ponto do filme não pudesse ser pior trabalhado, Lisa Celeste Stroud afirma no filme que posteriormente a cantora a agredia também. Atitude questionável por parte de uma mãe? Sim, com certeza, mas colocada no devido contexto, que só depois é explicado, torna-se mais claro o motivo do comportamento explosivo de Nina Simone: ela sofreu de transtorno bipolar e passou décadas sem o devido tratamento, que só foi iniciado nos anos 1980. Tudo é tratado no documentário como “gênio forte”, “genialidade”, embora o filme pouco explore os aspectos mais técnicos de Nina Simone enquanto musicista diferenciada e sua contribuição para o ramo. Dessa maneira, enquanto parte do filme a trata de forma mítica, essa outra parte a diminui enquanto ser humano.

To Be Young, Gifted and Black

Essas pontas soltas são, definitivamente, o que mais enfraquecem o documentário de Garbus. Por sorte, a diretora consegue ainda dar fôlego ao filme ao abordar a militância de Nina Simone em relação aos direitos civis dos negros nos Estados Unidos. Ela expõe de forma fascinante o envolvimento da cantora com essa página da história norte-americana, gerando uma emoção real no espectador ao mostrar quantos intelectuais despertaram a consciência crítica e autoafirmação de uma mulher que, em seu passado humilde, foi ensinada sempre a se calar. Estão ali imagens de Martin Luther King, Malcolm X, Lorraine Hansberry, Langston Hughes e toda sorte de grandes figuras do século XX.

Esse é o trecho do documentário mais envolvente, porque ele não se perde nem nas promessas de intimidade, nem na não-problematização de questões delicadas: o tratamento do tema ganha a perspectiva de Nina Simone, mas não se intimida ao fragmentá-lo e dar vez às demais vozes sociais para abordar um tema incômodo ao show business em que ela se inseria. Ao pensarmos em como vários grandes astros negros preferem dar suas contribuições a lutas de direitos civis por debaixo dos panos e separar totalmente essa faceta do que produz como entretenimento (vide Beyoncé e suas doações “secretas” para o “Black Lives Matter”), é tocante ver como Nina Simone usou seu dom a serviço da causa, criando canções ainda assim belas.

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Num balanço geral, “What Happened, Miss Simone?” não entrega ao espectador o que promete ao trazer essa pergunta. Porém, não deixa de ser uma viagem fantástica ao universo de uma das artistas populares mais interessantes do século passado e vale o ingresso, ou melhor, o clique, uma vez que se trata de um documentário exclusivo do Netflix.