Cheguem bem perto, leitores amigues: hoje inauguramos nosso puxadinho no terreno do Cine Set. A ideia é poder fugir um pouco da correria do circuito comercial, respirar fundo e olhar pra trás: quais são os recônditos do cinema brasileiro que merecem uma atenção maior do grande público? Desde os Clássicos com C maiúsculo aos malditos e obscuros; dos laureados pela crítica aos detestados por basicamente todo mundo – o que vale a pena, por um motivo ou outro, ser visto? 

Em outras palavras: o que você pode assistir na noite de hoje em vez de scrollar a esmo pela Netflix? É pensando em você, e apenas você, que estendo minha mão neste momento. E já que estamos apostando aqui em um molde mais fluido do que aquele da crítica tradicional, não nos preocupemos muito em julgar se um filme é bom ou ruim. Antes, nosso critério será: o filme dá a ver algo de interesse? Desperta alguma reação no espectador, qualquer que seja? 

Como seu guia, não só não espero que você se agrade com todas minhas indicações, como torço para que suas reações adversas possam ser o pontapé inicial para uma jornada particular. O cinema, e o cinema brasileiro, são territórios múltiplos e vastos, que abarcam e convidam a feitura de várias cartografias. 

Muito falatório. Deixemos de conversa e partamos para o “vamos ver”. O esquema é simples: sob uma frequência quinzenal, teremos um tema escolhido para servir de norte na curadoria de cinco filmes nacionais. Não se trata aqui de hierarquizar a coisa em nenhuma ordem específica, mas de listar possíveis pontos de interesse. 

Muito falatório outra vez. A verdade é que fazer listas é sempre uma atividade divertida e, no pior dos casos, você pode simplesmente adicionar os filmes recomendados à sua watchlist do Letterboxd. Depois nos preocupamos com o que fazer com eles. 

E aproveitando o mais recente lançamento comercial de Julio Bressane, “Capitu e o Capítulo”, vamos dar uma olhada na longa e frutífera relação entre o nosso cinema e a literatura: 

1. Um Apólogo (Humberto Mauro, 1939)

O pioneiro Humberto Mauro nos deixou obras notáveis desde o início de sua carreira, no chamado Ciclo de Cataguases. O que seria isso? Há uma certa abordagem historiográfica que revela o surgimento de diversos pólos de produção fílmica ao longo do país, e com a cidade mineira não foi diferente. Datam desse primeiro momento da carreira de Mauro os filmes “Brasa Dormida”, de 1928, e “Tesouro Perdido”, do ano anterior, que sobrevive em cópias apenas parcialmente completas. 

Com o surgimento da produtora Cinédia, bem aqui no meu Rio de Janeiro, Mauro se manda para a Cidade Maravilhosa, onde roda o que é, possivelmente, seu maior clássico: “Ganga Bruta”. Dotado de uma força pictórica ímpar – que, aliás, é marca singular de Mauro -, o longa bebe da psicanálise para compor frames altamente expressivos, na sombria história de um homicida envolvido num triângulo amoroso. Mas isso é caso para outra lista… 

“Um Apólogo”, nossa primeira escolha para a lista, foi rodado em um momento posterior da carreira de Mauro: empregado pelo governo varguista, o diretor rodou uma série de filmes propagandísticos e educativos, incluindo esta adaptação em curta-metragem do conto machadiano. A ironia do literato carioca encontra a câmera mineira de Mauro. Dos encontros de gênios que só o cinema propicia. 

2. “Boca de Ouro” (Nelson Pereira dos Santos, 1963)

O diretor Nelson Pereira dos Santos, dos mais importantes nomes quando o assunto é nosso cinema moderno, tem sua cota de adaptações literárias clássicas. Falo, é claro, dos seus longas baseados na obra de Graciliano Ramos: “Vidas Secas”, também de 1963, e “Memórias do Cárcere”, de 1984. Isso sem falar em sua adaptação de “A Terceira Margem do Rio”, de Guimarães Rosa. 

Mas achei de bom grado trazer este que talvez faça parte do seu lado B: a adaptação da peça homônima de Nelson Rodrigues (sim, estamos considerando o texto teatral como literatura, ora bolas). Até porque, deste modo, mencionamos o escritor cuja obra foi peça (sem trocadilhos) fundamental da nossa produção cinematográfica. 

Em se tratando de Rodrigues, poderíamos até ter escolhido alguma das adaptações de Neville D’Almeida, já em uma verve ligada à pornochanchada dos anos 1970 e 1980. Mas este longa de 1963 talvez mostre o melhor do polêmico escritor: a saber, sua atenção às miudezas do subúrbio carioca. 

A trama mostra a queda do bicheiro que dá nome ao título, aqui interpretado pelo magnético Jece Valadão. A inovação está na estrutura à la “Rashomon”, que remonta a mesma história a partir de diferentes depoimentos. Conta ainda com Odete Lara no elenco, além de um praticamente pubescente Daniel Filho. 

3. “A Hora e a Vez de Augusto Matraga” (Roberto Santos, 1965)

Aqui é preciso uma confissão: dei uma olhada nos filmes escolhidos para esta lista e percebi, com pesar e vergonha, que todos se passavam no Rio. Como forma de driblar meu bairrismo, optei pela inclusão do longa de Roberto Santos. 

Não que seja uma decisão polêmica: este é o caso de um daqueles Clássicos com C maiúsculo que mencionei. Estou ainda salvaguardado por um nome absolutamente incontornável da nossa literatura: João Guimarães Rosa, cujo conto original, incluído no seminal “Sagarana”, inspira o filme. 

A trama narra a história do sanguinário fazendeiro que dá nome ao filme. Emboscado e massacrado, o sujeito é dado como morto. Mas seus inimigos não contavam com a benevolência de um casal de sertanejos, que tratam suas feridas e curam a vileza dos seus modos. 

Tudo se complica quando Matraga se vê confrontado pela violência que deixou para trás, e precisa escolher que caminho seguir de uma vez por todas. Conta ainda com roteiro do teatrólogo Gianfrancesco Guarnieri. 

4. “Vereda Tropical” (Joaquim Pedro de Andrade, 1977)

Sei bem que a escolha natural para esta lista seria “Macunaíma”, dirigido pelo próprio Pedro de Andrade em 1969. Mas como resistir aos encantos das melancias? 

Sim, porque este curta-metragem (incluído na antologia em longa “Contos Eróticos”) narra a história de um sujeito que, sem meias palavras, curte transar com melancias. No duro. A história original foi premiada no Primeiro Concurso de Contos Eróticos, de onde também saíram as historietas que inspiraram os outros curtas da antologia. 

Essa “tara gentil”, nas palavras do diretor, desenrola-se na paradisíaca Ilha de Paquetá, bem no meio da Baía de Guanabara. É onde nosso protagonista, simplório sujeito de meia-idade que compartilha seus fetiches com sua amiga intelectual, colhe a flor da sua paixão entre as barraquinhas de frutas e leguminosas. 

Em chave paródica, Pedro de Andrade dialoga francamente com a pornochanchada em voga naquele momento. E como ele define o resultado? “Educativo e libertário.” 

5. “A Frente Fria que a Chuva Traz” (Neville D’Almeida, 2015)

Outra confissão: estava entre a inclusão deste filme ou de “A Casa Assassinada”, de Paulo César Saraceni. A verdade é que não gosto do longa de Neville D’Almeida, finalmente escolhido. Decisão contraintuitiva? Explico. 

A película de Saraceni, é verdade, conta com muitos pontos a seu favor: as suas belas composições em widescreen, tão belas que, diz-se, convenceram Glauber Rocha a rodar seu “A Idade da Terra” nesse formato; a fantástica trilha sonora de Tom Jobim, intensa, dramática, fervendo como a fornalha de uma maria-fumaça; a presença de Norma Bengell no elenco, além do inesquecível Carlos Kroeber; e daí por diante. 

Já o longa de Neville não conta com muito além dos olhos azuis de Bruna Linzmeyer, completamente deslocada em cena enquanto vocifera impropérios e obscenidades numa laje qualquer. 

O que explica esta decisão contraditória, então? É que “A Casa Assassinada”, apesar de seus méritos, simplesmente não ficou comigo depois da projeção. Enquanto que o longa de Neville, apesar do desgosto que a projeção me causou (ou por causa dele), ficou. Vai entender. (A prova: tive que apelar ao meu amigo Google para refrescar a memória no caso de Saraceni. Para Neville, isso não foi preciso. O ser humano realmente tem mais facilidade em guardar estímulos negativos do que positivos). 

Mas esta também é a oportunidade de salientar um cineasta que tem lá sua cota de obras-primas: há de se concordar ao menos que seu “Mangue-Bangue”, de 1971, é das experiências estéticas únicas do nosso cinema. Sem falar no anterior “Jardim de Guerra”. 

Sempre provocador, Neville D’Almeida galgou os degraus do popularesco com duas adaptações de Nelson Rodrigues – “A Dama da Lotação” e “Os Sete Gatinhos”. Assim como Rodrigues, Neville é o cronista da beleza e do caos que escorrem pelo lodo das sarjetas cariocas. O que também significa dizer que o cineasta por vezes erra a mão: as provocações chegam vazias, quando não engessadas, caindo num lugar comum que mais cansa do que propõe algo novo. 

O que nos traz a este “A Frente Fria Que a Chuva Traz”. Adaptando um texto teatral, Neville coloca uma porção de jovens globais numa festança na favela, traçando comentários pseudo-mordazes sobre as disparidades de classe no Rio. No meio do caminho, ainda passa por questões raciais e de gênero – a santíssima trindade a ser comentada pelos provocadores de plantão. Não que a ambiguidade com que Neville se orienta pelo terreno movediço do filme seja um problema per se; a grande questão é que, mais que um provocador, Neville soa como um velho. 

E, no entanto, o filme fica na cabeça… Cabe a você tirar a prova e resolver essa questão de uma vez por todas.