2017 tem deixado o mundo do esporte boquiaberto com o retorno triunfante de uma das maiores lendas do tênis, o suíço Roger Federer. Aos 35 anos e após enfrentar problemas físicos (passou por uma cirurgia no joelho) que o fez abandonar por seis meses o circuito, muitos davam como certo a sua possível aposentadoria em virtude da idade e da questão física. Porém, Federer diluiu estas expectativas, ao revolucionar o seu já vistoso jogo, trabalhando os pontos frágeis da sua tática e voltando a ganhar um Grand Slam no início do ano, colocando o seu nome de volta no hall da fama.

Caso você me pergunte o que o tênis tem a ver com o mundo do cinema, eu digo que a superação do tenista suíço equivale a nível de comparação, ao retorno de um grande cineasta que há muito tempo, andava adormecido: M.Night Shyamalan. Sim, o seu ego e algumas escolhas comerciais arriscadas, o ajudaram a ficar algum tempo hibernando, longe da popularidade. Quando fiz a crítica do último filme do diretor aqui para o Cine Set em 2015, o discreto suspense de horror psicológico, A Visita, disse que era sua tentativa de reconciliação com seu público depois de vários trabalhos decepcionantes.

Por isso, ao final da sessão de Fragmentado, quando as luzes do cinema se acenderam, não tive como negar um certo grau de satisfação e sorriso no rosto, pelo fato de ter presenciado um belo retorno triunfal de um habilidoso autor, de estilo versátil, que dentro da gênese cinematográfica, sempre dosou o mistério e o suspense com eficácia na sua fórmula de contador de fábulas psicológicas.  O novo trabalho, mais do que uma reconciliação, é uma carta de amor que coloca a sua carreira de volta aos trilhos do cinema sobrenatural e fantástico.

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Fragmentado é desde A Vila (2004), o melhor roteiro elaborado pelo cineasta indiano e se duvidar, o mais sólido em desenvolver sua narrativa desde Corpo Fechado (2000), filme por sinal, que dialoga muito com o atual, principalmente por ambos construírem a jornada do herói e do anti-herói de forma nada convencional, apostando no inusitado. A história é centrada em Casey (Anya Taylor-Joy, de A Bruxa) que depois de sair de um aniversário com duas amigas, é sequestrada e colocado em um espaço fechado por Kevin (James McAvoy, soberbo), um instável sujeito que sofre de múltiplas personalidades, sendo que a 24ª é uma espécie perigosíssima.

 Neste enredo principal, Shyamalan desenvolve três tramas que são muito bem costuradas: a primeira na vivência das meninas no cativeiro; a segunda focada na infância de Casey pontuada através de flashbacks dela na relação com o pai e tio; e a última centrada na interação de Kevin com a sua terapeuta, que desconfia que seu paciente está escondendo algo. Fragmentado surpreende, justamente, por seduzir o público através do seu mistério, e, por aparentemente, delinear personagens ambíguos e contraditórios (Kevin e Casey), humanizando-os e expondo os mecanismos que regem o universo que habitam. O texto é certeiro por mostrar desenvoltura de conciliar os três enredos, sem deixá-los desnivelados, passando a impressão que depois de anos escorregando neste quesito, o indiano finalmente soube montar seu quebra-cabeça psicológico de modo sólido, permitindo aqui, que o seu público se aventure em investigar o que se esconde por trás de todo o enigma em torno das dinâmicas de Kevin e Casey.

Vale ressaltar que com uma trama tão bem assimilada, o filme aprofunda bem seus personagens, deixando que a natureza psicológica dos seus conflitos e traumas se torne a base da sustentação da construção narrativa do filme, onde tanto o mistério quanto o suspense, necessitem dos seus personagens para que dê certo. É como se toda a experiência de horror proporcionado pelo diretor, emergissem da centralidade dos personagens dentro do universo oferecido por ele.

E se o filme mexe com nossas emoções e temores, há um questionamento interessante no seu texto para deixar o público com um elefante atrás da orelha: seria o trauma, a verdadeira resiliência do ser humano para seu crescimento pessoal? Uma vida normal e alheia aos perigos, nos incapacita para enfrentar o mundo?. Cronenberg em parte da sua filmografia na década de 70 e 80 (Videodrome e A Mosca) insinuava que a degradação mental do homem refletia nas suas transformações físicas – e potencialmente a sua derrocada -, Shayamalan por sua vez, aponta em Fragmentado o contrário, onde a dita corporalidade ocorre a partir da evolução mental. Abrir sua percepção para assimilar o fantástico e o sobrenatural, de ter consciência da excepcionalidade do próprio trauma (assim como rompê-lo) é a única via para sair da espécie de bolha emocional na qual estamos inseridos na sociedade e que molda nossa questão de viver, situação similar apresentada em Sexto Sentido (1999) e Sinais (2002)

Por se tratar de uma obra do indiano, não tem como deixar de louvar a forma como ele utiliza os recursos da mise-en-scène cinematográfica. Os 20 minutos iniciais de Fragmentado são uma aula de puro cinema, de construir a atmosfera de suspense apenas pela imagem, utilizando uma decupagem que potencializa o espaço fora de campo, sempre deixando o público na tensão como se algo angustiante fosse sair da tela para nos agarrar. É interessante em Fragmentado como os movimentos de câmera ganham uma insinuante função narrativa. A sequência final do filme representa muito isso, assim como a ótima sequência do sequestro que abraça o poder “hitchcockiniano” de gerar expectativas através das imagens, culminando na magistral ilustração do pai das meninas que vê Kevin se aproximando através do reflexo no para-choque do carro, onde a angulação nos permite ver vários “Kevins”. Isso compensa até os pequenos deslizes do filme, como o ritmo irregular na sua segunda metade e o enredo científico que não tem a mesma força vital quando comparado aos elementos psicológicos e sobrenaturais da obra.

E que interpretação de James McAvoy. Em um papel arriscado na qual qualquer nota errada poderia levá-lo ao caricato e ridículo, o ator encarna com talento as diversas personalidades do seu personagem, mudando-a como estivesse trocando de roupa. Aponta um controle absoluto, transmitindo ao público apenas através do olhar, sorriso e movimentos corporais, qual a identidade que estamos vendo naquele momento. A cena que ele é confrontado pela terapeuta é tão forte neste quesito, que só a mudança do olhar do ator deixa nítido a transição de uma identidade para outra. Se você é um daqueles que valoriza a atuação de Gloria Pires em Mulheres de Areia como Ruth e Raquel, o que dizer sobre a performance do ator? E não se deve deixar de mencionar a atuação de Anya Taylor-Joy, uma espécie de talismã no filme, emprestando força à história, através de seu olhar expressivo, de expor nos gestos e no corpo, toda a introspecção da sua personagem.

Por isso, Fragmentado vale cada centavo e merece ser conferido na tela grande do cinema. O velho ego do cineasta não poderia também deixar de dar as caras aqui no seu novo filme aparecendo no plot-twist da cena pós-créditos, que agradará a maioria e incomodará diversos outros. Em tempos que o universo da DC ainda não grelhou, porque não deixar o malandro Shayamalan estabelecer o seu próprio para competir com a Marvel? Fora isso, Fragmentado é o retorno triunfal do diretor as suas origens. Podemos dizer que ele finalmente se redimiu e abre uma grande expectativa sobre o seu próximo trabalho.