Na manhã deste último 9 de novembro, acordei e, como sempre faço, liguei o computador para ler as notícias enquanto tomava meu café da manhã. Logo fiquei chocado: Donald Trump havia ganhado a eleição para Presidente dos Estados Unidos. Fui dormir na noite anterior meio apreensivo, com os primeiros números da apuração saindo, mas nunca achei realmente que os americanos iam cometer essa sandice. Nunca achei que iriam mesmo colocar no posto de governante do país um cara que fez questão de promover o ódio e de alardear a própria estupidez. Eu estava errado.

Então abri meu Facebook e estava aquela tristeza geral. Todo mundo parecia em choque. Então vi uma coisa que me fez rir por uns momentos e aliviou esse choque momentaneamente: na minha timeline, alguém postou um gif do Snake Plissken, anti-herói vivido por Kurt Russell em Fuga de Nova York (1981). Era a cena na qual ele perguntava: “Presidente? Presidente de quê?”.

Quando Russell e seu parceiro, o cineasta John Carpenter, lançaram Fuga de Nova York, ele era um filme dominado pelo temor da guerra atômica – na história, um conflito parecia iminente entre os Estados Unidos e outras potências. Mas também era um filme sobre terrorismo, tanto doméstico – no início, um grupo sequestra o avião presidencial e o joga contra um edifício no centro da Ilha de Manhattan (!) – quanto do Estado contra seu povo. Afinal, no futuro sombrio do filme, ambientado no então distante ano de 1997, a ilha havia se transformado numa prisão de segurança máxima. Era para lá que Plissken tinha de ir para resgatar o Presidente dos EUA. Mas ele estava pouco se lixando para o homem ou o seu Estado policial. Só foi porque injetaram nele explosivos que o matariam caso ele não cumprisse a missão.

O filme, feito com orçamento pequeno e de forma independente, fez sucesso e virou cult. E graças a ele, Russell deixou o estigma de “ator Disney” – ele trabalhou em produções do estúdio quando criança – e conseguiu emplacar uma carreira sólida. Ao longo dos anos 1980 Carpenter e Russell voltaram a trabalhar juntos criando mais alguns clássicos. Porém, o astro queria voltar a interpretar Snake Plissken e, por muito tempo, insistiu com o diretor para fazerem uma continuação. Até que, um dia nos anos 1990, Carpenter enfim disse sim. Mas seria uma continuação nos seus termos, e a única da sua carreira.

Um dos pensamentos dominantes em Hollywood é, quando se trata de sequência, as pessoas querem basicamente ver a mesma coisa de antes, só um pouco diferente. E é exatamente isso que Carpenter dá ao público em Fuga de Los Angeles: no futuro distante de 2013, um terremoto separou a Califórnia do resto do país, e é para Los Angeles que são mandados os “indesejáveis”, aqueles que perderam a cidadania americana. Agora a guerra é contra o Terceiro Mundo, o líder dos inimigos da América é um tipo meio Che Guevara e seus comandados falam em “abrir as fronteiras”… E o novo Presidente? É um ultraconservador religioso – talvez brasileiros possam reconhecer o tipo?

É nesse cenário que Snake Plissken é mandado em mais uma missão, a de resgatar em LA um dispositivo capaz de desligar a energia de qualquer região. De novo, ele é injetado com algo que pode matá-lo – desta vez um vírus – e precisa correr contra o tempo para cumprir a missão. Mas o tempo não parece ter passado para ele: Plissken ainda é o anti-herói ultra-cínico e anti-autoridade, o mais “carpenteriano” de todos os protagonistas do diretor.

Porém, na época muita gente reclamou, e ainda reclamam, da trama repetida. Hoje, com mais calma, é possível perceber a intenção de Carpenter mais claramente: o diretor estava brincando com as expectativas, tanto do estúdio quanto do público. Ele se aproveita da nova ambientação para zombar de Hollywood. Afinal, um dos primeiros desafios de Plissken em LA é enfrentar os mutantes que vivem trocando partes de corpos, comandados pelo cirurgião de Beverly Hills – uma quase irreconhecível ponta do ator cult Bruce Campbell. Aliás, o elenco do filme é simplesmente fascinante, com figuras como Campbell, o ex-galã Cliff Robertson como o Presidente puritano, Pam Grier falando grosso como uma líder de gangue, o malucão Peter Fonda e o sempre excelente Steve Buscemi.

Também reclamaram da “tosquice” de algumas cenas, com efeitos de computação muito falsos e um dos piores chroma-key da história, na cena do surfe. Até isso adquire uma nova interpretação hoje: é Carpenter pegando 50 milhões do estúdio Paramount e fazendo algo bizarro, mais falso que seu longa de quinze anos antes, para realçar o artificialismo de Los Angeles e das superproduções de Hollywood. O diretor parecia já sentir o vento mudando: hoje, os Michael Bays da vida fazem um Transformers atrás do outro, com efeitos cada vez mais vazios e narrativas repetitivas. Há vinte anos, o rebelde de Hollywood fazia uma sequência para zombar com a própria existência das sequências, um “dedo médio” metafórico levantado para o cinema cada vez mais impessoal e vazio que saia dos estúdios.

Talvez por isso muita gente despreze Fuga de Los Angeles: porque sentem que o dedo médio também é apontado para nós, o público. É verdade que há momentos nos quais podemos sentir isso. Afinal, quem viu o longa anterior jamais esperaria ver numa continuação o Snake jogando basquete, ou a batalha final caótica e filmada com um pouco de preguiça por Carpenter. Mas em defesa do filme, afirmo que a sua primeira metade é tão boa, talvez até melhor, que Fuga de Nova York. É muito divertido passar um tempo com Plissken na sua distopia, e a rebeldia do personagem de poucas palavras e que não dá a mínima é muito sedutora, ampliada pelo carisma de Russell. É até possível determinar o ponto onde o filme atinge o ápice e depois começa a decair: é a sensacional cena das “regras de Bangkok”, na qual Plissken convence uns incautos a só sacarem suas armas quando uma lata cair no chão. Veja:

A partir daí o longa realmente fica irregular e alguns problemas começam a aparecer. Mas Fuga de Los Angeles não é impessoal e nem vazio, e perto do final Carpenter reencontra seu foco e chuta o balde, mandando outro “dedo médio” para as forças conservadoras e autoritárias do seu país. O diretor realmente se diverte ao mostrar seu herói mandando o mundo para o buraco, “desligando a Terra”, e quem nunca teve vontade de fazer isso alguma vez? Especialmente no recente 9 de novembro?

Por toda a sua carreira John Carpenter mostrou filmes com heróis lutando contra o mundo e a autoridade estabelecida, e com finais muitas vezes sombrios e apocalípticos. Não dá para ficar mais apocalíptico do que o final de Fuga de Los Angeles, porém mesmo assim o diretor, com seu filme, estabelece a força da rebeldia. É muito importante resistir à autoridade, contestá-la e até lutar contra ela, se necessário, tanto na política quanto no “fazer cinematográfico”.

Mesmo assim, a visão de Carpenter é niilista: Para o diretor, o importante sempre foi morrer lutando, nunca a vitória final. Às vezes a única opção é mandar tudo para o inferno e torcer para que o que vier depois seja melhor. Provavelmente não será. Onde estava o Snake para desligar o nosso planeta neste triste ano de 2016? Carpenter ao menos nos oferece a catarse, afinal, querer que tudo se dane é um sentimento muito humano. E a última fala do filme é “Bem-vindo à raça humana”.