Para a maioria das pessoas, acreditar em alguma coisa emocionalmente confortante, que lhes diga que há algo além desta existência, é uma necessidade tão poderosa quanto a fome ou a sede. A religião cumpre essa função para muitos, no entanto, seus benefícios no fim das contas são questionáveis: muitas atrocidades já foram cometidas em nome dela e também há muita picaretagem espalhada pelo mundo sob o disfarce da religião. Porém, para a grande maioria dos fiéis isso não importa. Eles acreditam e não podem viver sem essa crença.

O que leva ao tema do documentário Going Clear: Scientology and the Prison of Belief, que vem causando polêmica desde o seu lançamento no começo do ano – o filme recentemente chegou ao Netflix brasileiro. O documentário do cineasta Alex Gibney, baseado no livro igualmente bombástico do autor Lawrence Wright, é sobre a Igreja da Cientologia, a famosa e controversa religião que floresceu nos Estados Unidos e especialmente em Hollywood, onde a combinação da já mencionada necessidade de acreditar em algo com egos frágeis e influenciáveis se mostrou ideal para o crescimento dessa instituição religiosa.

Gibney nos leva para um passeio pela história da Cientologia na primeira meia hora do documentário e mergulhamos um pouco na mente do seu criador, L. Ron Hubbard (1911-1986). Hubbard era um escritor de ficção-científica e pulp fictions que um dia reuniu num livro conceitos para melhoramento e crescimento pessoal, tirados da sua cabeça. Eram os anos 1950, e seu livro “Dianética” foi um sucesso com seus elementos de autoajuda e conceitos copiados da psicanálise, a qual Hubbard paradoxalmente rejeitava. Pouco tempo depois, esses conceitos formaram a base da Cientologia, que cresceu nos anos 1960 (época da contracultura, e na qual muita gente acabou acreditando nas coisas mais estapafúrdias).

Hubbard, com o tempo, criou a “auditoria”, a técnica de avaliação da Cientologia que consistia em responder perguntas enquanto o entrevistado segurava uns eletrodos e uma agulha media o seu “pensamento”. Ele também começou a ser atacado pelas suas ideias, perseguido pelas autoridades e passou a viver em navios, com medo de ser preso. Se tudo isso parece um pouco familiar a quem viu o filme O Mestre (2012) de Paul Thomas Anderson, é porque é – o personagem do saudoso Philip Seymour Hoffman era claramente baseado no maluco Hubbard. Mas como dizia Ben Kenobi em Star Wars, quem é mais louco: o que lidera ou o que segue?

Afinal, Hubbard nem é a figura mais estranha do documentário. Esse título pertence ao atual presidente da Igreja, o sinistro David Miscavige, de quem o filme não pinta um bom retrato, para dizer o mínimo. Miscavige assumiu o comando depois da morte de Hubbard – ou melhor, do “abandono do seu corpo para estudar a existência em outro planeta” – e foi ele quem a transformou num negócio milionário, em grande parte graças ao seu maior feito, o de ter conseguido nos anos 1990 que a Justiça americana considerasse a Igreja isenta do pagamento de impostos.

E a Cientologia parece mesmo um negócio. Afinal, o que começa com ensinamentos até proveitosos de autoajuda se transforma, à medida que o sujeito avança dentro dos níveis da Igreja (e gasta, claro, muito dinheiro no processo), no estudo do senhor intergaláctico Xenu e das entidades que atrapalham a vida na Terra, os Thetans. É coisa de maluco, e o mais ilustre dos entrevistados do filme, o roteirista e cineasta Paul Haggis de Crash: No Limite (2005), se mostra abismado por ter conseguido acreditar em tanta bobagem por tanto tempo.

O filme é construído pelos depoimentos de ex-cientologistas como Haggis, e alguns dos entrevistados chegaram a ocupar altos cargos dentro da organização. E seus depoimentos revelam histórias tenebrosas e até de abuso, sendo a mais tocante a de Silvia “Spanky” Taylor, que por um tempo foi amiga próxima de John Travolta, um dos mais famosos cientologistas entre a comunidade de Hollywood. A história dos seus maus-tratos e da sua fuga da sede da Igreja, junto com seu bebê de poucos meses, é de arrepiar.

A outra história arrepiante do documentário é a da atriz Nazanin Boniadi, que curiosamente nem pôde ser entrevistada por causa do seu acordo de sigilo para com a Igreja. Segundo os relatos do filme, ela foi “preparada” pela Igreja para se tornar a namorada do astro Tom Cruise, após o seu divórcio da atriz Nicole Kidman. A Cientologia, e especialmente Miscavige, que vê Cruise como a face da Igreja e é amigo do astro, nunca teria gostado de Kidman pelo fato dela ser filha de um famoso psicanalista australiano, e teria tentado transformar Boniadi na futura nova senhora Cruise. A história dela, contada pelo filme, é chocante.

Travolta e Cruise são os maiores astros cientologistas de Hollywood, e enquanto o filme de Gibney especula que a Igreja possa ter algo contra Travolta (afinal, nas auditorias os entrevistados fornecem muitas informações pessoais), é Cruise quem emerge de Going Clear como um verdadeiro maluco. O diretor inclui no filme o segmento de um vídeo de Cruise comentando a religião, e nele o astro de Missão Impossível se mostra praticamente como um lunático. No caso de Travolta, Going Clear parece apelar para o lado da fofoca sem comprovação, o que o enfraquece um pouco, mas no tocante a Cruise as imagens falam por si.

Going Clear não é muito inovador na forma: as reconstituições das auditorias e de outros momentos históricos são feitas de forma padrão, quase jornalística. E a maior parte do filme basicamente consiste de conversas em frente à câmera, intercaladas com cenas de arquivo. Mas este é um caso claro de conteúdo mais importante que a forma. O retrato de Gibney e Wright da Cientologia é abrangente e poderoso. Ao final, mais do que medo, a sensação que fica com o espectador é de tristeza. É triste constatar como tantas pessoas, presumivelmente esclarecidas e inteligentes, se deixam participar de algo assim, chegando a sofrer abuso físico e psicológico por causa da sua religião. A crença é tão absurda, e os depoimentos tão contundentes, que a necessidade de acreditar se torna nociva aos olhos do espectador. Esse sentimento leva alguém a investir sua fé, seu dinheiro e sua vida em algo como o ditador galáctico Xenu, e o aspecto absolutamente mercadológico da Cientologia, aliado à bizarrice extrema dos seus dogmas, expõem esse lado infantil e triste do ser humano. E infelizmente, os soldados de Xenu, os advogados e executivos de uma instituição organizada e voltada para a exploração dessa necessidade, estes sim, são bem reais.