Uma forma fácil de apresentar grandes atores ou figuras do cinema clássico é relacioná-las com estrelas atuais. Gwyneth Paltrow e Grace Kelly, Natalie Portman e Audrey Hepburn, George Clooney e Cary Grant… Vocês entenderam. Logo, quando um não-tão-cinéfilo-assim me perguntou quem diabos era James Stewart, tive que recorrer à obviedade da comparação: “sabe o Tom Hanks? Pois é”. Pois é.

Ok, James Stewart pode ser considerado uma espécie de pré-Tom Hanks. Na verdade, seria mais justo dizer que Hanks é o herdeiro mais fiel de Stewart no cinema atual. Boa praça, sem grandes escândalos (até a publicação deste texto, nada havia saído sobre Hanks) e uma carreira sólida. Elevado à categoria de sujeito que a gente queria ter como amigo graças à parceria com o diretor Frank Capra, ele viveu ainda personagens por quem o público torceu nos filmes de Alfred Hitchcock. Stewart e Hanks “dividiram” até um trabalho, já que o primeiro originou em “A Loja da Esquina” o papel que o segundo faria no simpático “Mensagem Para Você”.

Já deu para entender, né? Vamos falar da filmografia de Stewart, então. Ela em si é rica em diretores que marcaram a história do cinema. Mais que isso. É um testemunho de longevidade e de uma discreta versatilidade, ainda que não em tipos interpretados, mas em gêneros explorados.


De onde vem esse cara

Nascido na Pensylvania em maio de 1908, James Maitland Stewart teria quase 110 anos, ainda estivesse vivo – ele morreu aos 89, em 1997. Filho de um comerciante, ele era um jovem com vários interesses: tocava instrumentos, corria, jogava futebol, cantava e participava de tudo o que era clube na escola particular onde estudava. Estudou arquitetura na prestigiosa universidade de Princeton e lá começou a desenvolver seu interesse nas artes além da música, e é aí que entra a atuação.

Stewart logo se destacou e foi convidado a integrar um grupo de teatro que o levou para vários pontos dos Estados Unidos e o fez conhecer um jovem promissor chamado Henry Fonda. Já um ator de destaque na cena teatral, o pai de Jane Fonda logo chamou a atenção de Hollywood e ele encorajou o amigo a fazer os primeiros testes para a MGM, após um executivo do estúdio assistir a Stewart em uma peça.


O início e a parceria com Frank Capra

O ano de 1935 marcou o início da carreira de Stewart na dita meca do cinema, mas não dá para dizer que “Entre a Honra e a Lei” fez dele um astro. Muito pelo contrário. Não dá nem para lembrar dele no filme estrelado por Spencer Tracy, este sim um ator já cheio de créditos.

Mas era o início. O ano seguinte chegou com Stewart em nove filmes diferentes. Teve começo a parceria com Edward H. Griffith e com a atriz Margaret Sullavan no inofensivo “Amemos Outra Vez” e também o status de protagonista, com “No Limite da Velocidade”, filme irregular ambientado nos bastidores do automobilismo.

O status de leading man, tão cobiçado na Hollywood clássica, caiu no colo de Stewart graças a filmes românticos como “O Sétimo Céu”, de 1937. Emprestado pela MGM para a Fox, ele viveu o “herói” da vida de Simone Simon neste remake do filme homônimo levado às telas dez anos antes – e indicado ao primeiro Oscar de melhor filme.

O desempenho nesse e em outros filmes daquele ano foram apenas uma amostra do que viria em 1938, com o início de uma parceria que marcou a carreira de Stewart. Foi com “Do Mundo Nada Se Leva”, de Frank Capra, que a indústria realmente passou a prestar atenção no ator. Fraco em relação a outros títulos posteriores do cineasta, “Do Mundo…” é fora da realidade demais até para os padrões “caprescos” e, assim como “Aconteceu Naquela Noite”, datado.

Contudo, a performance cativante de James Stewart nos revela um ator que entendia perfeitamente aquele universo, e que iria nos entregar algo melhor no mais interessante “A Mulher Faz o Homem”, sua segunda parceria com Capra, que estreou já em 1939, um dos melhores anos para o cinema hollywoodiano. Na trama do jovem ingênuo jogado à cova dos leões também conhecida como “política”,  Stewart é o protagonista capresco quintessencial em um plot que se tornaria quase arquetípico, para não dizer copiado tantas vezes de lá para cá. Pelo papel, ele recebeu sua primeira indicação ao Oscar, mas quem venceu foi Robert Donat por “Adeus, Mr. Chips”. Ainda naquele ano, ele também teve um papel de destaque no divertido “Atire A Primeira Pedra”, mas quando Marlene Dietrich está em cena, fica difícil prestar atenção nos belos olhos azuis (no caso, cinza, porque é um filme em P&B) de Mr. Stewart.


Leading man, oscarizado, piloto de guerra e eternamente George Bailey

Mas ele não precisaria esperar tanto assim pelo carequinha dourado. O Oscar veio no ano seguinte, com “Núpcias de Escândalo”, comédia dirigida por George Cukor onde dividiu a cena com o Cary Grant – o charme em forma de astro de cinema – e uma cativante Katharine Hepburn, aqui já coroada extraoficialmente como a diva das screwball comedies. A troca entre os três é divertida e Stewart segura bem a onda quando colocado em cena com Hepburn, mas, sinceramente, o Oscar para ele aqui é um daqueles crimes hediondos que a Academia adora cometer. Vencer Laurence Olivier em “Rebecca” e, principalmente, Charles Chaplin em “O Grande Ditador”? É o starpower e os grandes estúdios ditando as regras desde sempre. E vale dizer que “Núpcias” envelheceu bem mal.

Mesmo com um Oscar questionável, não dá para negar o magnetismo de Stewart, e um dos filmes onde essa característica esteve mais palpável foi no doce “A Loja da Esquina”. Como falei no início do texto, o trabalho de Ernst Lubitsch foi modernizado em “Mensagem Para Você”, e se tem algum casal para fazer frente a Meg Ryan e Tom Hanks, esse era James Stewart e Margaret Sullavan. A química entre os dois transforma o jogo de gato e rato típico desse tipo de filme em algo além de situações forçadas pelo roteiro. É uma pérola a ser descoberta. Os dois ainda apareceriam juntos naquele mesmo ano em “Tempestades da Alma”. Também em 1940, Stewart seria metade de mais um “casalzão da porra” do cinema, desta vez em “Pede-se Um Marido” com Hedy Lamarr.

Stewart ainda trabalhou mais um pouco, mas em 1941 fez uma pausa para seguir os desígnios militares de sua família. Ele serviu como piloto durante a Segunda Guerra Mundial, em uma unidade que tinha um soldado chamado Walter Matthau. Sim, ele mesmo.

Ao fim da guerra, James retornou a Hollywood pelas mãos de Frank Capra. O ponto final na parceria entre os dois foi justamente o filme mais famoso da dupla, e aquele que vocês certamente encontrarão em algum canal de tevê neste Natal. “A Felicidade Não Se Compra” é a melhor síntese do cinema de Capra, e Stewart agarrou com vontade a chance de viver o frustrado George Bailey e, se choramos com o drama do personagem, o mérito vem muito das escolhas do ator, que surge mais maduro após o hiato na carreira.

janela indiscreta alfred hitchcockSai Capra, entra Hitchcock

Frank Capra considerava Stewart o melhor ator com quem havia trabalhado, mas a parceria não seguiu adiante. Muitos atribuem isso ao fracasso (!) de “A Felicidade Não Se Compra”, que causou ainda a falência da produtora do cineasta. Mas Stewart pegou o embalo e seguiu trabalhando. Seu próximo trabalho importante o colocou junto a outro grande diretor do cinema.

Alfred Hitchcock já era um cineasta de renome quando resolveu filmar “Festim Diabólico”, um suspense ambientado em tempo real e composto de takes longos que forjam um grande plano sequência. Stewart é apresentado como um coadjuvante no filme, mas é dele que depende o desenvolvimento do terceiro ato da história dos amigos que resolvem matar um colega e oferecer um jantar no mesmo apartamento onde o corpo está escondido. O crescendo da direção de Hitchcock e a atuação de Stewart são dois componentes que se complementam, de forma que o espectador se sente tão ameaçado quanto Phillip e Brandon.

Foi um novo exercício na carreira do ator, que começou a respirar novos ares. Um deles já havia sido respirado lá atrás, mas o fôlego veio com tudo mesmo nos anos 1950. Estou falando da carreira de Stewart nos faroestes. Em “Winchester ‘73”, ele inaugura outra parceria importante, agora com o diretor Anthony Mann. Naquele mesmo ano, ele fez outro faroeste, “Flechas de Fogo”, onde tem o papel infelizmente obrigatório que todo ator branco parece querer, que é o de white savior.

O James Stewart carismático e boa praça dos filmes de Capra voltou a aparecer em “Meu Amigo Harvey”. A história do homem que tem um amigo imaginário voltaria a ser visitada por Stewart nos anos 1970 com um filme para a TV. Em 1951, ele reuniu-se com Marlene Dietrich no drama “Na Estrada do Céu”, quase um ensaio para “O Voo da Fênix”, de 1965, e “Aeroporto 77”, contribuição dele para os filmes-catástrofe dos anos 1970 repletos de atores da Era de Ouro dos estúdios.

Antes de voltar a se reunir com Hitchcock, Stewart participou de um dos mais chatos vencedores do Oscar de melhor filme (‘O Maior Espetáculo da Terra’), fez um certo tributo a seu passado como militar e músico (‘Música e Lágrimas’, sobre a vida de Glenn Miller) e continuou a parceria com Anthony Mann (‘Borrasca’, ‘E o Sangue Semeou a Terra’ e ‘Região do Ódio’). James voltou a aparecer em um filme de Hitchcock em 1954, com “Janela Indiscreta”. O thriller eletrizante sobre voyeurismo exigiu de Stewart: como seu personagem estava  preso a uma cadeira de rodas, a chave de sua atuação residia em suas expressões faciais. Ok, o som, a fotografia e a montagem são quase que responsáveis por todo o sucesso do filme, mas o herói cunhado por Stewart tem lá seus méritos.

Se em “Janela Indiscreta” o ator quase não mexeu o corpo, no próximo filme de Hitch ele precisou correr atrás do filho desaparecido. O remake de “O Homem Que Sabia Demais” hoje em dia é mais lembrado pela deliciosa canção “Que Sera, Sera”, entoada pela doce Doris Day, mas Stewart seguia a postos para salvar o dia, talvez de forma menos intensa que em sua derradeira contribuição ao catálogo de Hitchcock, “Um Corpo Que Cai”.

Clássico indiscutível do cinema, “Um Corpo…” precisava de um grande ator para funcionar. Afinal, vender a confusão de sentimentos de um homem enganado pelas próprias convicções e que também sofre com um grande trauma não é tarefa para qualquer galã apenas carismático. Infelizmente, Hitchcock não conseguiu ver a nuance do trabalho de Stewart e atribuiu o fracasso do filme ao ator, não mais um jovenzinho capaz de atrair multidões aos cinemas. Hitchcock trocou de “muso” e foi buscar em jovens como Anthony Perkins e Paul Newman seus próximos atores principais.


A maturidade

Bem, se Hitchcock não queria mais, tinha quem quisesse. No caso, Otto Preminger. O diretor escalou Jimmy para “Anatomia de Um Crime”, filme que se passa em sua maior parte do tempo em um julgamento. Stewart interpreta o advogado contratado para tentar safar a pele de um homem acusado de homicídio e que alega ter matado a vítima porque ela havia estuprado a sua esposa. No entanto, “Anatomia…” não tem nada de tradicional e funciona como um estudo de três personagens: o réu (um jovem Ben Gazzara, pré-John Cassavetes), a esposa do réu (Lee Remick) e o advogado vivido por Stewart. Responsável pelo personagem mais “no escuro” da trama (isto é, se você exclui os componentes do júri), o ator tem um belo trabalho, lembrado com uma justa indicação ao Oscar – na ocasião, ele e o genial Jack Lemmon de “Quanto Mais Quente Melhor” aplaudiram a vitória de Charlton Heston em “Ben Hur”. Essa foi a quinta e última indicação de Jimmy ao prêmio da Academia.

Ao que a fase leading man foi ficando para trás, o ator seguiu em grandes produções de faroestes, com pelo menos um clássico nesta época: “O Homem Que Matou o Facínora”, de 1962. No filme de John Ford, ele divide os créditos com o homem que definiu o cowboy cinematográfico (isto é, se você nunca viu um filme de Sergio Leone), John Wayne.

A parceria com John Ford, aliás, foi mais uma frutífera para ambos. Na mesma época, ele ainda viria a trabalhar outras vezes com Ford, em “A Conquista do Oeste”, western com ares de saga familiar no melhor estilo “E o Vento Levou” ou “Cem Anos de Solidão”, se me permitem a liberdade poética”, e ainda em ”Terra Bruta” e o “Crepúsculo de Uma Raça”.

Os anos 1970 chegaram e, ainda que o já sessentão Stewart ainda continuasse a marcar presença em um western aqui e ali (com direito a uma participação em ‘O Último Pistoleiro’, de Don Siegel, estrelado por John Wayne), o momento em Hollywood já não o favorecia. A despeito do já citado “Aeroporto ‘77” e do filme para a TV de “Harvey”, o ator diminuiu consideravelmente o ritmo.

A televisão, aliás, começou a ter mais e mais a atenção dos atores clássicos de outrora, e com Jimmy não foi diferente. Ele chegou a ganhar uma sitcom, o “Jimmy Stewart Show”, mas o programa teve apenas uma temporada. Com “Hawkins” ele também teve apenas uma temporada, mas chegou a ganhar o Globo de Ouro de melhor ator em série dramática.


Jimmy se despede e deixa a classe como legado

Os anos 1980 marcaram as últimas aparições dele em vídeo, com uma minissérie e o filme para a TV “Direito de Morrer”, em que ele faz um pacto de morte com a personagem de Bette Davis. Essa, aliás, foi a única colaboração dos dois em mais de cinco décadas de ambos em Hollywood.

A indústria não esqueceu de Jimmy. Em 1985, ele recebeu um Oscar de conjunto da obra e como reconhecimento por “50 anos de performances memoráveis, pelos seus ideais na frente e atrás das câmeras, com o respeito e afeto de seus colegas”.

O respeito e o afeto dos colegas, inclusive, é uma das marcas da trajetória de Stewart. Durante o discurso de entrega do Oscar honorário para ele, o amigo Cary Grant o definiu como um homem de “decência, força e bondade”, características, segundo ele, “evidentes em todos os filmes que Jimmy fez”.

James encerrou a carreira com uma participação na dublagem de “Fievel, Um Conto Americano”, em 1991. Seis anos depois, em julho de 1997, ele morreu em decorrência de um ataque cardíaco e embolia pulmonar.

É injusto com Tom Hanks e com Jimmy associar um ao outro. Ao mesmo tempo, talvez seja a maior honra da carreira do eterno “Forrest Gump” ter a sua persona sempre lembrada na mesma frase de um ator que criou laços com alguns dos diretores mais importantes do cinema. A filmografia de James Stewart é um sem número de petardos prontos para serem apreciados e, ainda que alguns títulos tenham envelhecido mal, é sempre um deleite ver a classe, a dedicação e a seriedade que o ator imprimia a cada trabalho. E, bem, ter tantos clássicos no currículo é para poucos.