José Gaspar é um daqueles nomes que depois que se tornam conhecidos, dificilmente são esquecidos. Conheci-o durante o processo de escrita da minha monografia, e esse encontro foi de fundamental importância para mim, teve um impacto decisivo, de alguma maneira consegui extrair daquela figura um pouco do seu conhecimento e amor pelo cinema e isso rejuvenesceu o meu interesse pela arte de modo geral, mudou o meu olhar, o tornou mais sério, mais consciente de que o trabalho de quem analisa e acompanha as artes pode sim ser de fundamental importância, desde que a pessoa adquira o olhar correto, e tenha a mesma paixão de quem realiza as obras de arte.

O luso-brasileiro foi o pioneiro da crítica de arte em Manaus. Em 1963, Gaspar já escrevia sobre cinema em um suplemento literário do “Clube da Madrugada”, grupo que reunia intelectuais amazonenses. Anos depois teve uma coluna fixa no Jornal A Crítica, e um programa de rádio sobre o tema na extinta Rádio Baré. Concomitantemente a isso Márcio Souza e Joaquim Marinho também escreviam sobre cinema em publicações de Manaus, enquanto que Ivens Lima apresentava um programa de rádio sobre cinema na Rádio Rio Mar desde 1954.

Muitos não sabem, mas Manaus era um lugar que estava conectado com o que acontecia nas artes do mundo inteiro na década de 1960: os vários cinemas localizados no centro da cidade viviam sempre lotados, grupos como o “Clube da Madrugada” discutiam questões culturais, políticas, sociais, e no fim desta década Gaspar, acompanhado de alguns amigos que participavam de importantes cineclubes na cidade, lançou quatro exemplares de uma revista especializada sobre cinema, a revista “Cinéfilo”, que foi tirada de circulação graças à ação da ditadura militar.

Em tempos como os de hoje, em que cada vez mais temos menos certeza sobre a continuidade das iniciativas culturais, em que as redes de cinema trazem apenas os filmes de enorme apelo comercial, com predominância dos títulos dublados, que presenciamos o fim de revistas como a “Bravo!”, e que nem se sonha a criação de periódicos que possam preencher esse espaço, olhar para trás e ver todas as coisas que um dia existiram, e com bem menos infraestrutura comparando com hoje em dia, ver a qualidade dos textos escritos por Gaspar e seus companheiros, faz com que se reflita sobre como devemos pensar o futuro.

Dono de grandes histórias, Gaspar animadamente me recebeu para longas conversas, e me apresentou a um universo desconhecido e estimulante, o qual convido você a embarcar junto.

CINE SET – O senhor nasceu em Manaus, foi criança para Portugal, e só retornou para cá depois de jovem. Quando começou verdadeiramente o seu gosto por cinema?

JOSÉ GASPAR – Começou aqui, não lá. Morava em Manaus, nasci aqui, na rua dos Barés. Até há pouco tempo, a casa em que nasci, que era dos meus pais ainda existia, agora não. A casa continua a mesma, mas foi completamente remodelada a fachada, e o interior não sei, nunca entrei lá depois de ter voltado de Portugal para o Brasil. Nasci em 38, nessa altura não havia divertimento se não fosse o cinema, bailes para os adultos, e outras festas sociais. Mas pra garotada mesmo era o cinema o único meio de vazão que tinha. E aí o seguinte, e é curioso que isso não ocorre agora. Haviam muitos seriados que nós, crianças, íamos aos sábados, onde cada episódio era exibido. Nós esperávamos uma semana para saber como continuava. Quando nós fomos pra Portugal estava passando aqui em Manaus o seriado “Os Tambores de Fumanchu”. E logicamente foi uma tristeza ter que viajar com os meus pais, ter que ir embora e não ver a conclusão do seriado. Mas aconteceu, curiosamente, que em Portugal estava a passar o mesmo seriado. Então eu pude conclui-lo. Hoje eu tenho um amigo aqui que tem esse seriado em DVD.

CINE SET – Como foram esses anos morando em Portugal?

JOSÉ GASPAR – Morava em Lisboa. Gostava muito de lá. A minha formação cultural foi feita lá, os anos passaram-se e eu acabei por contrair muito mais informações sociais em Portugal do que as que levava daqui, naturalmente, visto que quando cheguei aqui já estava com 23 anos. Estudei, formei-me. E antes disso meu pai ficou com receio do seguinte: em 1959 começou os movimentos de libertação das colônias, que coincidiu com a minha formação adulta, e o final dos meus estudos. E toda a gente tava sendo selecionado pra ser bucha pra canhão na iminência de estourar a guerra colonial, como veio a estourar. Pouco depois meu pai não teve dúvida, vamos embora porque não criei filhos pra morrer em lutas fraticidas, os pretos eram nossos irmãos, estavam na África, mas eram nossos irmãos evidentemente. Então papai nos trouxe com uma motivação política. Não a todos, porque tinha dois irmãos, um irmão e uma irmã. Meu irmão ficou lá, casou, era seis anos mais velho que eu. Não tinha muita chance de ser chamado pra guerra, porque era casado, e depois porque tinha prestado serviço militar, era reservista. Eu não, era novinho. Aqui tive sorte porque fui bem acolhido, e encontrei logo gente que também lidava com cinema.

CINE SET – E como foi o retorno a Manaus?

JOSÉ GASPAR – Eu teria preferido ficar lá porque eu não sabia o que iria enfrentar aqui no Brasil. Mas depois verifiquei que quaisquer medos que tivesse foram infundados. E gostei muito de voltar pra cidade onde nasci. Uma coisa curiosa, que guardo até hoje. Na noite em que cheguei a primeira impressão foi horrorosa, porque naquela altura Manaus tinha falta absoluta de luz e de água. Na década de 60 Manaus era um caos.

CINE SET – Junto com amigos o senhor fundou o GEC (Grupo de Estudos Cinematográficos), que funcionou como uma porta de entrada aos interessados por cinema a conhecerem mais a sétima arte. Como foi isso, e de que maneira essa iniciativa movimentou a cidade?

JOSÉ GASPAR – De imediato, em consequência da instalação, da criação do GEC, e da instalação do cineclube do GEC… o nosso objetivo era passar filmes e dar cursos, e que veio a se tornar o primeiro cineclube de Manaus. O Márcio Souza foi um dos que nos acompanhou, esteve conosco, era jovem ainda, estudava no Dom Bosco. Acho que o Márcio foi a primeira pessoa a ser influenciada pelo cineclube, e conseguiu formar um cineclube dentro do Dom Bosco. Depois houve um cineclube no centro recreativo dos funcionários do Banco do Brasil.

Cine Guarany, em ManausCINE SET – Muito se fala sobre o grande número de cinemas existentes em Manaus nessa época. O senhor lembra as suas localizações?

JOSÉ GASPAR – Havia o Guarany, que hoje é o banco Itaú, na Getúlio Vargas. Ficava dentro de uma muralha. Era o mais popular cinema do Centro. Ao lado tinha o Politeama. Ainda hoje está lá as Lojas Americanas. Subindo a Sete de Setembro, na segunda ponte tinha o Cine Éden, ainda tem lá o prédio. Na Joaquim Nabuco tinha um cinema, lá em cima, o Cinema Popular, ainda hoje existe, é uma casa comercial. Onde hoje tem a loja Bemol, ali era o Cinema Avenida, chamava-se Cinema Lançador, que era onde aconteciam as estreias. Quando eu voltei pra Manaus, continuava o Éden, que era do meu tempo de infância… Um pouco mais acima, onde hoje tem aquele prédio de 22 andares… Tinha o Avenida e Cine Odeon. Aí encerrava-se os do Centro. Ali perto de onde eu moro, tinha o Cine Palace, que era no Boulevard. Tinha o famoso, e maior cinema de Manaus, o Ipiranga, que ficava na Cachoeirinha. Também tinha um no Educandos, o Cinema Vitória, e no São Raimundo, o Ideal.

CINE SET – Como era a demanda de filmes no circuito comercial de Manaus nos anos 1960? E qual era o diferencial dos filmes exibidos no GEC?

JOSÉ GASPAR – Chegava cinema do mundo inteiro aqui. Filme japonês, sueco, checoslovaco, iugoslavo, francês, inglês, em Manaus passava tudo que era cinema existente aqui dentro do Brasil, que as grandes distribuidoras traziam. O foco do GEC era essencialmente o filme antigo, o clássico. Porque o Cosme sabia, mesmo no Rio, que em Manaus se ia muito ao cinema. Mas no meio disso tudo, eu nunca teria visto uma série de filmes importantes se não fosse pelo GEC.

CINE SET – Tem alguma história engraçada nesses anos de GEC?

JOSÉ GASPAR – Eu não vou citar nomes. Começamos a estudar o simbolismo no cinema. Citávamos filmes, e tal. Até que um perguntou, me diga uma coisa professor, aquela cena do Outubro [filme russo de 1928, de Grigori Aleksandrov] em que aparece um jogo de xadrez, em que está um líder comunista de um lado, estão os quatro líderes a jogar xadrez, e um deles faz uma jogada que liquida os outros. Alguém disse que aquilo estava muito claro, aquilo significava a luta interna entre eles, pra ver quem liderava. Aí o fulano disse, tudo bem, mas e aquela que os cavalos estão a defecar? (risos) Eu acredito que não há simbolismo nenhum, nem o Cosme, o cavalo resolveu soltar os torpedos dele, mas o cara achou que aquilo tinha sido ensaiado. E ele dizia, não, mas aquilo é o desprezo, o cavalo estava sendo montado por alguns membros da Revolução, um cavalo que horas antes era montado pelo exército, defecava para eles (risos). Aí o Cosme vinha com toda a seriedade, então você vê, muita imaginação, coisa e tal, aí fez a demagogia dele. Sempre me lembro disso.

CINE SET – Um cineclube muito conhecido foi o Humberto Mauro. Como se deu a sua criação?

JOSÉ GASPAR – O Humberto Mauro já foi em 69, 70. Ele coincidiu, mais ou menos, com a criação da Fundação Cultural do Amazonas, o que hoje seria a Secretaria de Cultura do Estado. Foi feito o primeiro festival de cinema aqui em Manaus. O Joaquim Marinho, a essa altura, grande incentivador do cinema em Manaus, proprietário de uma cadeia de cinemas, era o secretário do órgão que cuidava do turismo, que depois ele transformou, teve a grande missão de transformar a secretaria de cultura num órgão, não privado, mas também não era público, era um misto, isso eu não sei se ele chegou a concluir, mas teve essa ideia. Ele promoveu o primeiro festival de cinema do norte. A cidade toda ficou envolvida, e eu recebi o convite, me dava muito bem com ele através do Clube da Madrugada, com o Elson Farias, e ele foi o primeiro, ou um dos primeiros superintendentes da Fundação Cultural do Amazonas. Ele perguntou se eu aceitava criar um cineclube na Fundação. Aceitei, claro! Fosse onde fosse eu aceitaria. Então fui trabalhar na Fundação. Ele criou o serviço de cinema da Fundação Cultural, o qual fui convidado a dirigir. E a minha preocupação foi criar o cineclube, e lhe dei o nome de Cineclube Humberto Mauro. Por quê? Porque eu comecei a ver filmes do Humberto Mauro lá em Lisboa. O “Ganga Bruta”, que é considerada a obra-prima dele, se bem que eu não acho isso, mas é uma questão pessoal, trechos de “O Canto da Saudade”, um filme belíssimo, um documentário no ambiente rural dele. Outros filmes deles, “Brasa Dormida”… Os documentários dele, que nós passamos aqui, “A Velha a Fiar”, é um homem que interpreta a mulher, e está magnífico o ator… passamos outros documentários dele aqui.

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