A mineirice na forma articulada e simples de falar acompanhado do sotaque inconfudível até enganam ao pensar que estamos diante de uma moradora de Belo Horizonte, Governador Valadares ou Betim. Cris Ventura reside em Goiás desde 2015, onde trabalha como professora do Bacharelado em Cinema e Audiovisual e do Curso Técnico Integrado ao Ensino Médio em Produção de Áudio e Vídeo do Instituto Federal de Goiás (IFG). Também possui uma carreira de realizadora com três longas-metragens: “Amador” (2010), “Nas Minhas Mãos Eu Não Quero Pregos” (2012) e o recente “Cambaúba”.

Exibido na última edição da Mostra de Tiradentes, “Cambaúba” traz Cris Ventura também na frente das câmeras ao realizar um filme sobre o lugar em que habita. A região está marcada pelo fantasma do Anhanguera e pela índigena Cari, que fora aprisionada no Rio Vermelho por uma maldição.

O longa faz parte da pesquisa de doutorado da diretora sobre “a ritualidade da realização cinematográfica e como o ator/personagem ao iniciar este processo se transforma, entendendo o set de filmagem como um ritual capaz de obter esta eficácia”. Para além de “Cambaúba”, durante o trabalho, Cris Ventura analisou as obras e entrevistou seis importantes nomes do cinema brasileiro: Adirley Queiróz (“Branco Sai, Preto Fica”), André Novais de Oliveira (“Temporada”), Affonso Uchôa (“Arábia”), Juliana Antunes (“Baronesa”), Bruno Risas (“Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu”) e Marcela Borella e Henrique Borella (“Taego Ãwa”).

Nesta entrevista exclusiva para o Cine Set, Cris Ventura conta detalhes sobre os bastidores do filmes, os conflitos e as descobertas no set de “Cambaúba”.

Cine Set – Fale sobre qual era seu principal foco relacionado à pesquisa ao fazer o filme e como isso foi se transformando no decorrer do tempo.

Cris Ventura – Na hora em que fui fazer “Cambaúba”, pretendia realizar uma etnografia de um set de filmagem tanto da ritualidade da realização cinematográfica como também do ator/personagem que se transforma ao iniciar este processo, entendendo o set de filmagem como um ritual capaz de obter esta eficácia.

A pandemia e a rotina de uma mãe sem uma rede de apoio que permita longas ausências, porém, impediram que isso fosse feito, conforme inicialmente pensado. A partir daí, reconfigurei a proposta para algo mais próximo do meu cotidiano ao retratar mães solos, as quais dificilmente conseguem ficar totalmente em um set de filmagem.  

Isso me levou a questionamentos sobre ser possível adequar uma produção cinematográfica para a disponibilidade destas mães. O maior desafio para fazer “Cambaúba” acabou sendo estes ajustes para possibilitar as participações delas, diferente do que ocorre em um set de filmagem profissional em que fatores externos pouco influem, pois, estão todos imersos naquela experiência. Fora que ninguém pergunta aos homens quem irá cuidar dos filhos enquanto trabalham – eles simplesmente vão embora, ficando até um mês fora e viajando pelas cidades necessárias. 

Logo, o trabalho junta tanto a pesquisa, a vivência e a prática, virando uma coisa só. 

Cine Set – “Cambaúba”, então, veio de uma necessidade de trabalhar com aquilo que está perto do seu universo? 

Cris Ventura – Exatamente. Durante as entrevistas com os cineastas, notei três aspectos muito importantes: 1) alguns cineastas fizeram seus filmes dentro da própria casa com as respectivas famílias; foi assim como o André Novais em “Ela Volta na Quinta”; 2) há também aqueles que filmam a comunidade onde vivem como faz o Adirley Queiróz; e 3) o cineasta que se insere naquela realidade para realizar o filme; em “Baronesa”, por exemplo, a Juliana Antunes alugou uma casa e ficou alguns meses na comunidade. São três relações diferentes entre quem filma e quem é filmado.  

A partir disso, projetei para “Cambaúba” e como poderia fazê-lo diante da minha realidade e do meu território. A ideia para o filme surgiu no final de 2020, mas, comecei a filmar muita coisa mesmo bem na época da pandemia. Tudo pelo celular de forma até despretensiosa como um experimento mesmo até pela falta de recursos.   

Nisso, lembrei da experiência do Affonso Uchôa em “A Vizinhança do Tigre” em que ele filmava o cotidiano da comunidade, mas, com o tempo, foi pedindo para as pessoas encenarem certas situações, criando personagens com desejos e interesses pessoais. À medida em que eu gravava, conversava com os vizinhos e alguns propunham certas situações, surgindo um esboço de um roteiro. Fizemos um ensaio, montei uma primeira versão toda no celular e apresentei a proposta para eles de como seria o filme. Quando viram, eles toparam seguir no projeto. 

Para fazer o filme em cinco diárias, montamos uma pequena equipe de vizinhos e mais dois alunos egressos – um para fotografia e outro como assistente de direção. Durante as gravações, certas ideias como realizar planos-sequências não funcionavam pela dificuldade em executá-las (risos). Chegamos a regravar depois alguns trechos, mas, de qualquer modo, este trabalho serviu para a qualificação da minha tese no final de 2021. Paralelo a isso, corremos também para inscrever o projeto em um edital da Lei Aldir Blanc para finalização. Fomos aprovados.  

Cine Set – A ideia de você se colocar como personagem estava desde o início do projeto ou surgiu no meio do processo?  

Cris Ventura – Sim, desde o começo, mas, na primeira versão, o personagem era mais besta (risos). Inicialmente, ela era mais ingênua, sem saber exatamente onde e a razão de estar ali. Não havia esta ideia de investigar as coisas. Isso me incomodou bastante por ser uma branca filmando pessoas negras, indígenas. Daí, entrou este aspecto dela ser uma pesquisadora, de tentar entender o que é Goiás, escutar as vizinhas. Na minha visão, isso ajudou a evitar uma caricatura.  

Cine Set – Mas, é fácil ou complicado interpretar a si mesma?  

Cris Ventura – Difícil, muito difícil (risos). Era a questão da minha tese: você vê o jeito e como fala as coisas. Na primeira versão, tinha momentos em que achava tudo horrível e queria logo colocar uma atriz para fazer o meu papel até por estar com a missão de dirigir ao mesmo tempo. Algumas vezes eu ficava sem graça mesmo. Foi bem complexo; se não estivesse fazendo eu mesma e sem assumir a direção e produção, talvez, seria mais tranquilo.  

A primeira versão do filme também tinha outras atuações bem ruins, o que era complicado por, muitas vezes, eu também estar na cena, obrigando a mim tê-los que dirigir gravando. Praticamente não havia ensaios; apenas orientações informando o posicionamento da câmera e quais seriam as movimentações dos atores. Ficava muito tensa, especialmente na cena do ritual, onde muita coisa deu errado e tive que fingir que estava tudo bem. 

Cine Set – Você considera que a posição do diretor é uma das mais solitárias?  

Cris Ventura – Sim, eu acho muito difícil. Durante as gravações, eu fiz um diário minucioso sobre o processo de pesquisa e realização, o qual se tornou o quarto capítulo da minha tese. Lá, relato minhas angústias na direção, seja ao precisar ter o comando geral, encarar os momentos de empolgação e desânimo da equipe, mediar os imprevistos, improvisar aquilo que não saiu da forma prevista. Tudo isso na hora e na maneira como fosse possível.   

Há coisas que realmente não dá para controlar, o que acaba sendo frustrante em diversos momentos por você precisar mudar algo que foi pensado e escrito com muito cuidado. Estas alterações ora podem ser melhores ora piores, sendo necessário estar aberto para elas. Fora que há circunstâncias difíceis de se comunicar para o outro: por mais que você converse explicando aquilo que deseja, há certas questões entre você e a pessoa que não sairá. 

Cine Set – Isso é mais difícil com não-atores?  

Cris Ventura – Sim, porque não há uma preparação antecipada do elenco e ocorre muitos improvisos. Logo, acaba sendo mais complicado. De qualquer maneira, gosto de trabalhar com atores capazes de contribuir na construção, indo além da orientação direcionada e toda já formatada pelo diretor. Eu passo algumas ideias, oferecendo informações sobre os contextos do personagem e da situação. Isso cria um processo do intérprete propor algo e eu aceitar ou não.  

Com o não-ator, porém, a dinâmica é outra: ele não chega a propor uma construção do personagem. A pessoa é a pessoa, o que torna necessária a adaptação das tuas ideias para o personagem a ela. Neste caso, o diretor propõe mais para saber onde vai funcionar mais.  

Cine Set – Houve alguma situação concreta em que você precisou se adaptar mais ao não-ator em relação àquilo que desejava inicialmente?  

Cris Ventura – Isso aconteceu mais com as crianças. Em “Cambaúba”, dava para notar como muitas delas ficavam travadas na frente da câmera, não conseguindo desenvolver totalmente as falas e os personagens. Também tinham adultos que até topavam fazer parte do filme, mas, no momento da gravação, ou não estavam tão à vontade ou precisavam filmar rapidamente.  

Por outro lado, a relação com a Erlane Gomes de Sá, que interpreta a Morena, foi bem mais tranquila pela facilidade com que ela entendia o que era necessário para a cena, fora a presença muito forte.  

Cine Set – E como ficou a sua relação com os vizinhos após realizar “Cambaúba”?  

Cris Ventura – Sim. Tinha uma vizinha que era uma das minhas melhores amigas e colega no IFG. Ela passava por um momento muito delicado financeiramente após perder o emprego. O projeto veio e ela criou uma expectativa grande de que receberia um cachê alto – na realidade, o dinheiro daria apenas para quitar de um a dois meses das contas do dia a dia.  

A minha decisão foi por pagar todos igualmente e sempre deixando claro que se tratava de um projeto pequeno, porém, ela começou a alegar que trabalhava mais do que os outros. Infelizmente, não tenho como corresponder a todas as expectativas das pessoas. Houve sim um desgaste a ponto do companheiro dela, que atuava como meu assistente de direção, ter saído no meio das filmagens. Chegamos a conversar, ele declarou que se sentia desvalorizado, pois, desejava estar mais envolvido na parte criativa.  

Cinema é conflito. Dificilmente você fará um filme que irá agradar a todos.  

Cine Set – Sua fala lembra uma declaração do Francis Ford Coppola em que ele dizia que o cargo de diretor era um dos últimos trabalhos ditatoriais existentes no planeta… 

Cris Ventura – Houve momentos em que precisei me impor de forma mais incisiva. Tive dificuldades com certos homens da equipe a ponto de precisar reforçar que eu era a diretora. Também cheguei a gritar em um momento das gravações para organizar as coisas devido ao caos em que tudo estava. 

Chegaram a me perguntar durante a pesquisa se achava contraditório a escolha de eu assinar como diretora em vez de colocar como um filme coletivo. Respondi de imediato que não, pois, já tinha vindo de uma experiência do gênero que não deu certo na prática. 

No fim, por mais aulas e disciplinas que você possa fazer, direção só se aprende mesmo na prática. 

Cine Set – Quando vi “Cambaúba”, notei uma influência muito forte do cinema de gênero, especialmente, do terror. Você buscou mesmo este tipo de referência? Se sim, quais filmes e diretores?  

Cris Ventura – Sim e era para ter mais (risos). Tentamos criar a fumaça para emular a neblina, porém, o vento a levava para outro lugar (risos). A ideia inicial quando eu ainda filmava com o celular e um estabilizador era que fosse a câmera fosse um fantasma, morador do rio que vê a vida das pessoas ao atravessar as casas.   

Goiás também traz uma atmosfera do terror. Eu moro em um beco e, quando saio à noite pelas ruas próximas, sinto que um monstro virá atacar de qualquer lugar. Tudo é muito vazio. Quando cheguei para morar, o estranhamento era tanto que pensava ser uma cidade-fantasma. Não é à toa que são tantas as histórias de assombração no imaginário da população. 

Apesar de não termos muito orçamento, fizemos o possível para criar estes momentos. Chegamos a gravar uma cena simulando o rio cheio de sangue em que as pessoas da produção realmente ficaram assustadas. Teve gente que até rezou. “Cambaúba”, entretanto, não foi a primeira experiência no terror: em 2017, junto com o Renné França, eu participei de “Terra e Luz” (disponível no Prime Video), também gravado aqui em Goiás.  

Quanto às referências, a principal foi “Beetlejuice – Os Fantasmas se Divertem” (1988). 

Cine Set – Para fechar, ao longo da entrevista, você falou sobre dividir o tempo entre ser mãe e trabalhar com cinema. Gostaria de saber de você se a maternidade ensinou sobre dirigir um filme e vice-versa. 

Cris Ventura A maternidade ensina sobre ser cuidadosa igual se faz necessário quando você dirige um filme. Às vezes você fala com a pessoa de uma forma e ela escuta aquilo de um jeito que pode afetá-la, parecido quando você grita ou xinga uma criança, gerando um efeito muito ruim. Diante disso, sempre é importante se perguntar sobre como falar e abordar uma pessoa.