Quando o cineasta Steven Soderbergh anunciou que ia se aposentar em 2013, eu particularmente não botei muita fé, nunca achei que ele iria ficar mesmo aposentado. Porque Soderbergh é uma cria do cinema, com as características que isso implica: parece ser uma daquelas pessoas que respira filmes e pensa nos termos deles. Além disso, ele era um raro diretor capaz de ir do entretenimento popular ao “filme de arte” como quem simplesmente troca de camisa. Ora, ele também sempre me passou a impressão de que não diferencia um do outro, para ele só existem o cinema, a história a ser narrada visualmente e a maneira como ela vai se relacionar com o público. É um dos cineastas com a mente mais aberta que se viu nas ultimas décadas: ele se aventura por diferentes gêneros, pelos grandes sucessos e pelas pequenas produções que quase ninguém viu, com a mesma desenvoltura.

Além disso, ele não parou exatamente de dirigir, só o tamanho da tela é que mudou – ele passou uns dois anos comandando a série The Knick para o Showtime.

Agora, depois de alguns anos, Soderbergh retorna ao cinema com Logan Lucky: Roubo em Família, e é como se o tempo não tivesse passado. De novo, ele alia a sua sensibilidade incomum, trazida do cinema independente, a um projeto com potencial para agradar ao grande público. Afinal, Logan Lucky é cheio de astros e se situa dentro de um gênero bem conhecido e que geralmente agrada, o filme de assalto. Soderbergh já fez alguns do tipo, Onze Homens e Um Segredo (2001) e suas sequências. Mas ele não se repete porque Logan Lucky é praticamente a versão caipira, ambientada no interiorzão dos Estados Unidos, e desglamourizada, de Onze Homens.

Na trama, temos os dois irmãos Logan do título, caipiras e fracassados, vividos por Channing Tatum e Adam Driver. Para sair da pindaíba, Jimmy (Tatum) convence Clyde (Driver) a assaltar o autódromo onde se realiza a mais popular corrida de NASCAR. Jimmy tem um plano… Mas para funcionar eles precisam da ajuda de Joe Bang (Daniel Craig), que está preso, e dos irmãos dele. A única coisa que conspira contra é a teoria de Clyde de que a família Logan é amaldiçoada e todos os seus planos estão fadados a não dar certo…

Como acontecia em Onze Homens, não vemos realmente os preparativos para o assalto – Soderbergh sempre acreditou que era mais divertido acompanharmos tudo junto com os personagens. A primeira meia hora do longa, enquanto estamos conhecendo os personagens, lembra uma comédia dos irmãos Coen. Rimos da estupidez de alguns, nos afeiçoamos com os problemas pequenos das vidas de outros. E quando o assalto começa, é quando Soderbergh – um cineasta cinéfilo, claro – se esbalda naquela atmosfera “quase setentista” do longa, embora ele se passe na época atual, e nos momentos de humor e tensão. E o filme vai de um para o outro com facilidade: basta citar a cena em que Joe, uma criação impagável de Craig, tenta fazer funcionar um estranho explosivo e menciona que “há ciência envolvida aqui”. O roteiro encontra até espaço para zoar com o escritor George R. R. Martin e sua demora para terminar a sua saga da Guerra dos Tronos, em mais um momento inspirado.

Craig demonstra mais uma vez ser capaz de fazer qualquer coisa, mas a exemplo do que já acontecia em outros filmes de Soderbergh, o elenco inteiro brilha. Tatum tem menos a fazer do que seus companheiros, mas transmite com facilidade a dignidade do seu personagem. Driver cria uma composição física admirável, parecendo rígido e sempre sério em cena, mesmo falando com um sotaque divertido – é um personagem engraçado justamente porque o ator o vive de maneira séria, sem cair na caricatura. Seth MacFarlane aparece (quase) irreconhecível e se diverte com (esta sim) a sua caricatura. Jack Quaid e Brian Gleeson são hilários como os irmãos Bang. Riley Keough e Katie Holmes são sérias, duronas e racionais neste universo de figuras estranhas, e até a menininha Farrah Mackenzie é uma gracinha como Sadie.

A inteligência da visão de Soderbergh se estende além do trabalho com os atores. Como muitos dos cineastas dos anos 1970, seus filmes frequentemente apresentam um teor meio “contrabandista”, ou seja, por trás dessa história de assalto com personagens malucos, há cutucadas na “caipirice” americana. A NASCAR já é uma corrida meio “jeca” com aqueles carros sem parar dentro daquele círculo. O baixo nível intelectual dos personagens e o sentimento patriótico que transborda quando se ouve a canção cantada de forma super-mega-hiper emocional no início da corrida também são fenômenos tipicamente americanos. O personagem de Driver perdeu a mão no Iraque, já seu irmão quase deseja provar algo a si mesmo, pois carrega o estigma do “perdedor”, o cara que poderia ter sido alguma coisa na vida e não foi.

A diferença, no entanto, entre Soderbergh e os irmãos Coen, é que enquanto esses últimos às vezes riem dos personagens idiotas que criam, o tom de Soderbergh é sempre afetuoso. De vez em quando aqueles personagens causam humor, mas eles são levados a sério pelo filme, o contador da história nunca se coloca como superior a eles. De vez em quando aqueles estúpidos surpreendem com inteligência. A conclusão surpreendente aposta mais no drama daqueles personagens do que na comédia. Essa conclusão é também o calcanhar de Aquiles do filme, pois parece que Soderbergh e sua roteirista Rebecca Blunt querem a todo custo amarrar todas as pontas soltas, fazendo com que Logan Lucky se estenda uns 10, 15 minutos além do necessário. Mas até ali o espectador já se divertiu e ficou em suspense, torcendo por aqueles fora-da-lei como sempre fazemos no cinema. Até ali, a condução de Steven Soderbergh foi impecável.

Cineasta cinéfilo, criador de climas, amante dos anos 1970 e um condutor de atores brilhante: o que mais podemos pedir? Seja bem-vindo de volta, Soderbergh.

Ainda bem que eu estava certo.