Marseille, a primeira produção francesa do Netflix, aborda uma disputa política e tem cenas de intriga, sexo e, ocasionalmente, de violência. Por causa de tudo isso, a série foi comparada a House of Cards, e essa não é uma comparação descabida. Claro, a escala em Marseille é menor – na série francesa, apenas uma cidade está em jogo, enquanto que na produção estadunidense é “o mundo livre”. Mas fora isso, as intrigas políticas e o clima de suspense são bem próximos da série do Presidente Frank Underwood. Marseille, no entanto, falha ao estabelecer seus personagens, e esse é o maior problema no qual um seriado pode incorrer.

Marselha é a segunda maior cidade francesa – como é dito algumas vezes durante a temporada – e com um porto aberto para o Mediterrâneo, parece possuir um clima misterioso, tão bem explorado por William Friedkin no seu clássico policial Operação França (1971), por exemplo. A cidade é administrada pelo prefeito Robert Taro (interpretado pelo astro Gérard Depardieu). Taro é apresentado, no primeiro episódio, na torcida de um jogo do Olympique de Marseille, e diz na narração em off da cena de abertura que ama a cidade.

Estamos tão acostumados com os políticos da vida real e os da ficção que a principio até estranhamos ver o prefeito da série como um sujeito relativamente honesto. Claro, ele desenvolveu um vício em cocaína, mas fora isso parece um sujeito boa-praça, que chega a afirmar num momento que “nunca pus a mão no pote de mel, mas fechei os olhos algumas vezes”. Ele também parece ter uma relação próxima com seu vice, Lucas Barrès, vivido por Benoît Magimel – ainda mais lembrado pela sua atuação em A Professora de Piano (2001).

Por causa dessa proximidade, vem como uma surpresa o fato de que, numa votação importante, subitamente Barrès se volta contra Taro e uma guerra passa a ser declarada entre o prefeito e seu vice. Uma guerra motivada por um evento no passado dos dois homens, e que é revelado ao espectador no decorrer dos episódios.

Parece interessante, não é? Mas na prática, a série do roteirista Dan Franck e do diretor Florent Siri, que dirige a maior parte dos episódios, é bem produzida, mas emocionalmente vazia, simplesmente porque os personagens despertam apenas indiferença, com uma pequena exceção. Quanto mais a série progride, mais se fortalece a convicção de que Taro não é realmente gente boa, ele é desinteressante mesmo. O personagem é muito indefinido – ora se ressente de ter colocado a família em segundo plano por causa da carreira, ora se mostra capaz de uma artimanha para prejudicar seu adversário – e Depardieu, já contente no seu papel de ícone, não se esforça também para lhe dar um pouco mais de vida. Ao longo dos oito episódios, a única coisa que realmente fica clara sobre ele é o seu amor pela cidade. E a esposa dele, vivida por Géraldine Pailhas, é uma personagem perdida: após receber um diagnóstico, ela passa vários episódios indo de um lado para o outro até finalmente fazer alguma coisa.

Magimel não se sai muito melhor, apesar de possuir um personagem, na teoria, mais interessante. Barrès, ao contrário de Taro, é ambivalente, até mesmo no aspecto sexual – numa cena ele provoca sugestivamente um homem, embora seja visto fazendo sexo com mulheres. Ele tem ligações com a máfia marselhesa e é um personagem completamente investido em “matar o seu pai” político. Pena que ele acabe se tornando um vilão raso em alguns momentos, chegando a expor uma “máscara” do seu mentor no escritório e apresentando cenas de explosão emocional dignas de um menininho mimado.

Além disso, suas motivações nunca são realmente aprofundadas – sabemos por que ele faz o que faz, mas nunca chegamos realmente a compreender a real dimensão do seu ódio por Taro, ainda mais quando percebemos que ele sempre foi próximo da família do prefeito. Por que ele escolheu esse momento para se tornar inimigo de Taro? Especialmente porque – e o próprio prefeito pergunta isso a Barrès numa cena – ele poderia “herdar” a prefeitura em breve e sem problemas. São questões cruciais para o personagem de Magimel, que a série não responde.

De fato, a única personagem da série com motivações claras é Julia, a filha de Taro, vivida por Stéphane Caillard. Ela é caracterizada como alguém que nunca quis viver do sobrenome famoso do pai e isso a leva a trabalhar como repórter e a se envolver com uns sujeitos “fora do seu estrato social”, por assim dizer. É verdade que os dois rapazes que ficam disputando a moça são bem chatos, mas Julia é a personagem mais bem desenvolvida da série, e os relacionamentos dela com o pai e a mãe rendem os poucos momentos emotivos da temporada.

Por isso mesmo, é uma pena que a série mostre uma visão meio sexista. Praticamente todas as atrizes principais tiram a roupa em cena – Caillard, várias vezes – e as mulheres são peões no jogo masculino. Até a personagem de Nadia Farés, na teoria uma mulher poderosa, é mais lembrada pelo seu figurino, ou pelos diálogos sugestivos, do que propriamente pelo seu nome. Esse apelo sexual – uma cartada que House of Cards, por exemplo, soube usar com inteligência e numa frequência bem menor – se mostra como uma muleta da série para compensar o pouco suspense da trama. Assim como os constantes e bombásticos fade outs e as tomadas aéreas da cidade, captadas por lentes que a distorcem. Tudo em Marseille é ora forçado (o suspense), ora indefinido (os personagens), e mostrado da forma mais séria possível, alcançando o efeito contrário, o de deixar a série parecida com uma novela mal concebida e exagerada.

De novo, é difícil escapar da comparação com House of Cards: lembram-se como, logo no início do primeiro episódio da série americana, nós já conhecíamos quem era o Frank Underwood? Lembram como a cena, a fotografia e a atuação de Kevin Spacey mostravam imediatamente quem ele era? E como isso também não tardou a acontecer com a Claire? Quando se chega ao fim desta primeira temporada de Marseille, ainda não entendemos realmente quem são aquelas pessoas e o dilema fundamental da série parece bastante superficial – sério, por que Taro e Barrès não se sentam, tomam um café e fazem logo as pazes? Em alguns momentos de Marseille o ícone do Netflix é visto quando Taro faz uso do seu telefone celular. Se o usar, o prefeito consegue encontrar opções melhores de programação do que a sua própria série.