“Não vou assistir para não ter gatilhos”, “estou com medo de ver esta série”, “vai me dar pesadelos”. Foi comum encontrar frases como estas pelo Twitter em meio à repercussão causada por “Os Outros”. Basta ler a sinopse ou assistir aos primeiros minutos da produção da Globoplay para entender que estes temores são compreensíveis, ainda que leve esta mesma pessoa a correr o risco de perder uma das melhores séries de 2023. 

Criada por Lucas Paraizo e dirigida por Luisa Lima, “Os Outros” é um suco da geração 2000, hoje na faixa dos 30 e poucos anos. De uma classe média que viveu o sonho de um Brasil que parecia estar pronto para o tão propalado momento do “país do futuro”, mas, acabou frustrada e encarando uma realidade menos gloriosa do que prevista. Tanto rancor e ressentimento explodiram em violência e ódio. 

O SONHO 

“Aqui você pode tudo, filho”, diz Cibele (Adriana Esteves) para o pequeno Marcinho (Antonio Haddad na fase adolescente). E por que não acreditar nisso? A infinidade de possibilidades vislumbrada pela mãe à pequena criança era traduzida naquele bom e ensolado apartamento próprio a ser quitado em 10 anos. O horizonte com quadras de futebol, skate, tênis, piscina e tudo mais que tinha direito simbolizava quase um reino encantado para a classe média, que sonhava em ser elite. Ao som de “João e Maria”, de Chico Buarque, tudo fica ainda mais sedutor. 

Partindo de um casamento florido transbordando de felicidade, a mesma realidade funcionava para Wando (Milhem Cortaz) ao lado da esposa Mila (Maeve Jinkings). Com um ótimo carro na garagem e um filho campeão de judô como Rogério (Paulo Mendes), o combo era mais do que perfeito. Tudo isso em plena Barra da Tijuca, o bairro símbolo do crescimento imobiliário do Rio de Janeiro no início dos anos 2000 e dos emergentes da época. 

Pouco importava as incongruências deste avanço ser fincada a partir de uma a estruturação familiar para lá de arcaica com os homens ainda sendo o centro financeiro das famílias, restando às mães ficarem em casa, cuidando dos rebentos como verdadeiros príncipes em uma redoma de superproteção. O peso da conquista da casa própria, sonho de consumo da classe média brasileira ao longo de grande parte da história do país, era suficiente para contornar qualquer problema.  

Pelo menos, era isso o que se pensava…  Se a fachada destas relações parece sólida e inabalável a partir de um sonho realizado, o interior demonstra que tudo está por um fio. 

A FRUSTRAÇÃO 

No rio de infinitas possiblidades abertos pelos nossos sonhos, nunca pensamos que entre elas estarão caminhos nem sempre de flores e total bem-estar. A realidade planejada pelos protagonistas não previa o vício em remédios de Cibele para controlar a ansiedade ou o tédio de Mila por conta da vida de dona de casa sem nada para fazer muito menos os empregos burocráticos de Amâncio e Wando, a realidade. 

São vidas marcadas por uma agonia desesperadora, resolvidas cada uma a seu modo. Milhem Cortez despeja toda uma impulsividade assustadora para Wando, uma figura ora repulsiva pelas atitudes com a esposa ora empática tamanha a completa maré de azar inacreditável. Já Adriana Esteves exerce semelhante intensidade, mas, em um fio da navalha de alguém prestes a desmoronar, mas, se segurando o quanto pode.  Verdade que a atriz se excede em certos momentos, porém, quando acerta o tom no drama durante os dois últimos episódios, brilha igual ocorre ao ir para humor na fase do relacionamento entre Marcinho e a funkeira Lorraine (Gi Fernandes).

Antonio Haddad e Maeve Jenkings trabalham a frustração em um outro ponto, de menor intensidade, mas, não menos desesperadora, afinal, são duas pessoas sufocadas pelos seus companheiros e insatisfeitas com o rumo de suas vidas. Os dois, porém, buscam uma racionalidade e pragmatismo para seguir adiante – igual fazem milhões e milhões de infelizes todos os dias. O reflexo disso acaba sendo visto nos filhos adolescentes dos dois casais: a imaturidade excessiva com aquela cara de bobão de Marcinho ou a raiva do mundo de Rogério, ambos brilhantemente defendido por seus atores, trazem retratos de uma geração com as dúvidas naturais da adolescência somadas a um ambiente inóspito.

Em modo semelhante a “O Som ao Redor”, clássico de Kleber Mendonça Filho, “Os Outros” trabalha na construção gradativa destas frustrações, transformando o ambiente do condomínio de reino encantado em uma verdadeira panela de pressão através dos apartamentos sufocantes, quase sem luz por conta das cortinas fechadas e com o som dos aparelhos domésticos ganhando uma dimensão de prenúncio de uma tragédia. Até tudo explodir (em certos casos, literalmente) na única saída vista como possível.   

A VIOLÊNCIA  

Se “o inferno são os outros”, como dizia o filósofo Jean-Paul Sartre, nada mais natural do que despejar todas as frustrações de sonhos não alcançados no próximo. Um cuspe na cara, um xingamento ou ofensa onde mais dói, riscar o carro do vizinho, cagar em uma caixa de pizza se tornam a resposta a tudo que saiu fora dos conformes.  

O paradisíaco condomínio se torna palco de uma guerra entre duas famílias aparentemente normais, naqueles que são os melhores e mais assustadores momentos de “Os Outros”. Foco do perfeito episódio piloto, as explosões de fúria de Cibele e Wando são tão identificáveis ao Brasil intolerante e violento, expostos nas urnas em 2018, em que a truculência se torna a resposta aos problemas. Nada muito diferente do que é visto no trânsito ou até mesmo em casa pelos ataques contra as mulheres feitos pelos companheiros delas, o que leva aos altos índices de feminicídio registrados país afora. 

Com a violência se tornando a tônica das relações, a busca por segurança e proteção se torna prioridade para a própria sobrevivência. Eis a entrada de Sérgio (Eduardo Sterblitch), um ex-policial com um arsenal de armas para dar e vender, encontrando a brecha para colocar milicianos liderados por ele para comandar a segurança do condomínio. Aqui, porém, “Os Outros” cria um dilema para si por precisar ampliar o microcosmo familiar para um contexto social maior. 

Inicialmente, a série até vai bem por mostrar a arma como instrumento da falsa sensação de segurança e a caprichosa forma como Sérgio enrola todo o condomínio em um esquema com a síndica Lúcia (Drica Moraes, excelente). Aqui, é preciso separar um trecho para falar de Sterblitch: esqueça o comediante transtornado da época do “Pânico” ou das presenças insanas em programas de auditórios da vida; mais controlado (pelo menos, na primeira parte), o ator joga com o cinismo de alguém que sabe aproveitar o desespero do próximo e uma pitada de loucura de um sujeito capaz de tudo para tornar Sérgio uma persona completamente ameaçadora do início ao fim. 

Pena “Os Outros” focar grande parte das ações na metade final neste núcleo miliciano, especialmente, a partir do sequestro de Wando. Ainda que gere verdadeiros momentos de tensão com o ápice no impecável sétimo episódio, a trama ganha uma dimensão que deixa em segundo plano este caos das vidas frustradas da classe média para gerar um vilão único. Muito disso em troca de ganchos para segurar o público, incluindo, a desnecessária isca para uma possível segunda temporada. Uma estratégia comercial coerente, mas, com preço caro para o conjunto da série.  

Ainda assim, nada que diminua os pontos altos de “Os Outros”. Para além de ser disparada a melhor série da Globoplay e uma das maiores do Brasil nos últimos anos, o olhar cirúrgico para os dramas de uma classe média frustrada em seus sonhos apelando para a violência como única saída serve para uma reflexão sobre nós mesmos. Justo por isso, talvez, os gatilhos de nos reconhecermos em tantas ações de Wando, Cibele, Rogério, Marcinho, Amâncio e Mila mais do que gostaríamos.