Os créditos finais de O Abraço da Serpente possuem uma dedicatória melancólica, mas importante: “à memória de povos cujas canções nunca conheceremos”. Memória é uma palavra fundamental para o longa do colombiano Ciro Guerra, indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2015. Afinal, o filme é justamente uma tentativa de resgate, ainda que por meio da ficção, daquilo que é uma das maiores feridas não-cicatrizadas de toda a América Latina: a história dos povos indígenas que foram colonizados pelos europeus na Amazônia.

O filme é baseado nos diários de expedição do etnógrafo alemão Theodor Koch-Grünberg e do etnobotânico norte-americano Richard Evans Schultes, ambos responsáveis por relatos históricos sobre a Amazônia, frutos de suas viagens pela selva. O verdadeiro protagonista, porém, é outro: o indígena Karamakate (Nilbio Torres/Antonio Bolívar), um xamã que é o último de sua tribo, e acompanha os dois exploradores, em décadas diferentes. Os dois estrangeiros estão à procura da rara yakruna, uma planta sagrada que pode ser a cura para o mal que aflige cada um: para Grünberg, a cura física da doença que lhe acomete; para Evans, a cura metafísica para quem nunca teve um sonho.

Para quem lê a sinopse, há muitos clichês comuns a filmes sobre a Amazônia postos desde o início: exploradores brancos, a busca por uma planta mística e rara, canibalismo, espiritualidade e até a presença de uma grande serpente, inclusa no próprio título, ainda que ela venha a ser metafórica – um pouco de tudo que já se viu no “cinemão”, desde Holocausto Canibal (1980) a Anaconda (1997). O grande trunfo de O Abraço da Serpente, porém, é romper com os estereótipos e a história eurocêntrica para trazer à tela a perspectiva indígena da história, subvertendo, assim, todos esses clichês. A subversão começa pela própria fotografia de David Gallego, que prefere mergulhar todo o filme em um preto-e-branco que lhe permite brincar com as sombras, de forma parecida ao polonês Ida (2014), em vez de mais uma vez mostrar a visão exótica e opulenta da “Amazônia verde”.

Em tempos em que Hollywood é frequentemente criticada pelo apagamento de personagens e atores asiáticos, negros e mulheres em seus filmes, Ciro Guerra dá uma lição de representatividade ao colocar Nilbio Torres, nativo da própria região, na pele de Karamakate. Torres, que nunca havia trabalhado como ator, passou por treinamento prévio e, aliado à tradição oral que já carregava consigo, faz um belo trabalho como o personagem. Além disso, O Abraço se mantém fiel tanto às línguas – nove delas são faladas no decorrer do longa, entre as ameríndias e as europeias (espanhol, português, alemão e inglês) – quanto à memória dos povos indígenas, uma vez que o roteiro é fruto também do próprio contato de Guerra com diversas comunidades da Amazônia.

Karamakate (Nilbio Torres), em cena de O Abraço da Serpente

Colonização, violência e metafísica na Amazônia

Embora tenha um pé nos diários dos exploradores e dos relatos indígenas, a história contada por Guerra é de fato ficcional, mas não menos impactante por conta disso. Numa espécie de road movie em que os rios ocupam o lugar da estrada, o diretor e roteirista coloca Karamakate como narrador e testemunha das marcas da colonização em seu próprio povo, fazendo-o passar por uma série de situações que mostram as consequências do choque de culturas na Amazônia.

Assim, pontos essenciais dessa história vão aparecendo no decorrer das viagens que Karamakate faz, como a influência da religião ocidental, por exemplo, que surge na figura de uma missão capuchinha no meio da floresta, em que o frade impede que meninos indígenas falem sua própria língua – é uma “língua de Satanás” – e os pune a chicotadas. O cenário ressurge quarenta anos mais tarde expondo suas consequências, em um cenário apocalíptico em que um homem se diz messias e lidera toda a comunidade numa espécie de surto. Também há espaço para a crueldade dos barões da borracha, estampada no sofrimento de um dos personagens que cruza o caminho de Karamakate e Grünberg.

Porém, é importante apontar que O Abraço da Serpente também nunca cai no maniqueísmo de pintar todos os estrangeiros como essencialmente ruins, tornando, assim, a narrativa ainda mais complexa e cheia de nuances. Em certo momento, por exemplo, Grünberg tenta evitar a qualquer custo que uma comunidade indígena fique com sua bússola, para que o conhecimento tradicional de se guiar pelas estrelas não se perca.

É justamente na discussão da perda desses conhecimentos e na quase completa extinção de culturas indígenas que Guerra se concentra. Através dos olhos de Karamakate, acompanhamos o progressivo apagamento de tradições milenares, à medida que a colonização avança sobre a Amazônia. A narrativa bifurcada, porém, nos permite também ver como a própria postura do personagem muda conforme o tempo: se o Karamakate mais jovem, a princípio, se recusa a ajudar Grünberg e tenta a todo custo manter suas tradições, o mais velho tenta guiar Evans, vendo no cientista uma oportunidade de manter vivos e registrados os conhecimentos de seu povo. Como o último de sua tribo, Karamakate não tem mais com quem deixar a história guardada por meio da oralidade, e nem sua própria memória é confiável. Nesse sentido, um momento especialmente tocante é quando o personagem chora ao se dar conta de que esqueceu de algo.

Karamakate (Antonio Bolívar), em cena de O Abraço da Serpente

Tudo isso se encaminha para um final à lá 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), que fecha a odisseia amazônica de Ciro Guerra com um passeio psicodélico pela espiritualidade indígena, e, assim, fortalece a ideia dos laços presentes entre os povos nativos e a Amazônia, ela própria uma personagem do filme.

Assim, ao se debruçar sobre um ponto de vista raramente retratado no cinema e ao se propor a resgatar uma memória coletiva ignorada pelos anais da história, O Abraço da Serpente se torna mais do que um filme bom: é um registro fundamental de um tempo perdido nas águas da Amazônia. Pode não ser uma Amazônia documental, etnográfica ou antropológica, mas é fiel em espírito à sua essência.