Mas reduzir “O Iluminado”, de Stanley Kubrick, à simples denominação “filme de terror” é trair a ambição, o alcance e a complexidade da obra do cineasta americano, um dos grandes mestres dessa arte no século passado. “O Iluminado” é, sim, um grande filme de terror, mas acima de tudo é um grande filme, sob qualquer aspecto.

Trazendo uma atuação inesquecível de Jack Nicholson, além de cenas e diálogos antológicos (quem não sentiu um arrepio na espinha ao ver Nicholson anunciar “heeeere’s Johnny!”, de machado em punho, ainda não viveu), “O Iluminado” recuperou o prestígio de Kubrick junto à Warner Bros., além de gerar um dos maiores sucessos de bilheteria da longa carreira do artista.

Como sói acontecer com Stanley Kubrick, porém, a obra-prima de 1980 teve um parto longo e complicado, e seu lançamento ocorreu em meio a uma nuvem de incompreensão e má-vontade. Antes de continuarmos, porém, há algumas coisinhas que você precisa saber sobre o hotel Overlook. Nada demais, mas, você sabe, as pessoas tendem a ser supersticiosas sobre essas coisas…

o iluminado jack nicholsonFebre da cabine

Em 1980, a reputação de Stanley Kubrick, até há pouco venerado como um deus pela comunidade cinéfila, estava abalada. Seu último filme, o drama de época “Barry Lyndon” (1975) foi o primeiro revés em uma carreira até então marcada por sucessos formidáveis. Mesmo em seus lances mais radicais (e todo filme de Kubrick estava cheio deles – vide os pontos de vista múltiplos de “O Grande Golpe”, os longos planos sem diálogos de “2001 – Uma Odisseia no Espaço”, ou o violento despudor de “Laranja Mecânica”), uma maré favorável acabava se formando, provando que o diretor, afinal, tinha razão.

“Lyndon”, no entanto, além da indiferença do público, amargou um silêncio brutal por parte dos críticos. Era um filme, pelo menos, tão bom quanto todos os outros (para este escriba, o melhor do diretor), mas suas três horas de duração, o ritmo compassado, sem pressa, e a complexidade moral dos personagens, apresentados sob uma luz sarcástica, quase impiedosa, aparentemente desconcertaram os admiradores do ritmo alucinatório de “Dr. Fantástico” e “2001”.

Pela primeira vez na carreira, Kubrick estava sozinho. Se antes, com base em seus sucessos de público, ele tinha um poder quase sem precedentes sobre a feitura de um filme – era Kubrick quem nomeava os técnicos, escolhia o elenco e decidia sobre a montagem final de suas obras –, em “O Iluminado” esse poder estava sob ameaça. Seu estúdio, a Warner Bros., que havia bancado todas as estripulias do diretor desde “Laranja Mecânica” (1971), de repente já não tinha mais tanta fé em seu gênio infalível.

Por tudo isso, o anúncio da produção de “O Iluminado” soou como um ruidoso sell-out para Kubrick – o eterno independente cedia, enfim, à pressão da bilheteria, apelando para um gênero tido como rasteiro na busca por um sucesso de público. À distância de três décadas, e em vista tanto do produto final quanto das obras que se seguiriam na carreira de Stanley Kubrick, o raciocínio soa absurdo, para não dizer ridículo.

o iluminado gêmeas“Brinque conosco, Danny”

Kubrick, porém, tinha um desafio e tanto à sua frente. Depois de apresentar o futuro (“2001”) e o passado (“Lyndon”) de formas nunca sequer tentadas no cinema, e de extrair obras-primas do noir (“O Grande Golpe”) e do filme de guerra (“Glória Feita de Sangue”, talvez o maior de todos), o diretor agora se voltava para o mais desprezado dos gêneros cinematográficos.

Hoje tendemos a considerar o terror um gênero com direito próprio à existência, com toda uma tradição e mestres egressos de suas fileiras (Roger Corman, Mario Bava, Tobe Hooper, John Carpenter…). Em 1980, não era bem assim. Terror era um gênero restrito aos iniciantes, um tipo de filme barato e rápido, feito para o consumo dos adolescentes e de casais com intenções pouco cinéfilas. Mesmo Hitchcock, o maior criador de thrillers da primeira metade do século, só foi reconhecido como um mestre quando já estava prestes a se aposentar.

Kubrick, claro, não era um iniciante. E nem sua incursão pelo gênero teria qualquer coisa a ver com o tipo de produção barata que fez a fama de Roger Corman na década de 60. Para “O Iluminado”, o diretor iria beber em duas fontes de inspiração tão originais (para a época) quanto distintas: Stephen King e David Lynch.

Do primeiro, que então começava a deslanchar na literatura, Kubrick retirou o mote: num hotel majestoso (o Overlook), um zelador e sua família são gradualmente levados à loucura por manifestações misteriosas. Já de Lynch, à época uma sensação underground por “Eraserhead” (1977) – filme que o próprio Kubrick tinha entre seus favoritos – o diretor buscou a atmosfera, a habilidade para construir um clima surreal e inquietante.

O elemento decisivo para unir esses dois pólos foi Jack Nicholson. Desde o início da década de 70, Kubrick acalentava o desejo de trabalhar com o astro. Jack foi escalado para viver Napoleão na longamente ambicionada biografia de Kubrick sobre o imperador francês, projeto abortado ainda nos estágios iniciais. Só Nicholson seria capaz de imprimir a dose exata de tormento e loucura a Jack Torrance, o zelador medíocre, com ambições a escritor, que pouco a pouco é tomado pela vibração sombria do Overlook.

Nicholson, porém, era um talento reconhecido, um ator cuja entrega e inspiração há muito já o haviam elevado ao primeiro escalão dos intérpretes. Para o segundo papel mais importante do filme, Kubrick fez uma opção arriscada: a quase desconhecida (para o grande público) Shelley Duvall. E foi aí que os problemas começaram…

o iluminado dog mask sex“All work and no fun…”

Nenhum filme fez mais para cimentar a fama de Kubrick como um diretor perfeccionista, cioso às raias da obsessão, do que “O Iluminado”. Tudo graças ao documentário de making-of rodado pela filha do cineasta, Vivian, que, num lance único para Stanley, notoriamente avesso a qualquer intrusão em seus domínios, teve carta branca para registrá-lo em ação, captando seus métodos e idiossincrasias.

Assim como “2001”, que trouxe um arsenal de efeitos especiais nunca visto no cinema, ou “Lyndon”, que chegou ao requinte de contar com lentes especiais da NASA para poder filmar à luz de velas, “O Iluminado” trouxe uma grande inovação para a técnica cinematográfica: o uso da steady-cam. Para quem não sabe, a steady é um suporte móvel para a câmera, que permite longas movimentações sem trancos. Numa sacada genial do cineasta, ela se tornaria a marca registrada do filme, permitindo incorporar o próprio hotel como personagem da trama. Até hoje, os longos takes da câmera seguindo Danny (Danny Lloyd), filho de Nicholson e Duvall no filme, estão entre as imagens mais lembradas de “O Iluminado”, criando o clima ominoso, de ameaça iminente, que Kubrick tanto buscava.

Mas a famosa obstinação do diretor ficaria reservada mesmo para Shelley. Na busca de uma interpretação “autêntica” da atriz – isto é, autenticamente aterrorizada –, o diretor usou de todo tipo de truque, desde repetir a mesma cena centenas de vezes, provocando cansaço e irritação, até simular uma perseguição real de Nicholson à atriz. Não à toa, os gritos trêmulos de “Jack! Jack!”, perto do final, não chegam a ser inteiramente atuação. À época, Shelley reclamou à beça – mas, num documentário recente sobre o diretor, afirmou que não trocaria aquela experiência por nada. Kubrick, por sua vez, ficou bastante frustrado com a falha da atriz em atingir suas expectativas, mas, no fim, conseguiu o que queria.

o iluminado “Você é o zelador, Jack. Sempre foi”

“O Iluminado” não pegou, de imediato, com o grande público. Com a crítica, pior ainda. No ano inaugural do troféu Framboesa de Ouro, o filme foi indicado a dois prêmios, mostrando a descrença geral – e apressada – da indústria em relação à obra. Refletindo a constante da carreira de Kubrick, porém, o filme começou a decolar, chegando a faturar 44 milhões de dólares só nos Estados Unidos – um sucesso significativo para um filme de terror, ainda mais se dirigido por um nome associado ao cinema “de arte”.

O impacto maior do filme, porém, foi na cultura pop. Incontáveis cenas e diálogos de “O Iluminado” foram parar em filmes, desenhos e canções alheias, das famosas “gêmeas Grady” à palavra “Redrum” pichada na porta, para não falar no imortal “heeeere’s Johnny!”. Em pouco tempo, o juízo da crítica sobre o filme deu uma virada total, e “O Iluminado” é hoje considerado um dos três maiores filmes de terror de todos os tempos, ao lado de “O Exorcista” (1974) e “Psicose” (1964). Kubrick confirmou de vez sua genialidade e abriu o caminho para a fase final de sua carreira, onde faria “Nascido para Matar” (1987) e “De Olhos Bem Fechados” (1999).

Se, ao longo deste texto, cheguei a falar pouco sobre o filme em si – suas cenas clássicas, maiores detalhes da trama – é porque quero reservar este parágrafo final a um pedido. “O Iluminado” é um filme para ser vivenciado. Para provocar sensações em quem vê, para ser desfrutado em todos os seus detalhes e ambiguidades. Trata-se de grande cinema, destinado a assombrar, a provocar reflexão, a impactar o espectador como só as obras-primas conseguem. “O Iluminado”, filme de terror? Sim. “O Iluminado”, filme – grande filme, experiência inesquecível, para ser vista e vivida. Deixe de lado qualquer preconceito contra filmes de terror – se tiver – e mergulhe numa das obras mais representativas de um dos verdadeiros gênios do cinema. Assista – e, com o perdão do trocadilho, ilumine-se.