Um jornaleiro com deficiência e uma vendedora de mente aberta e sexualmente bem-resolvida não parecem escolhas estranhas para protagonistas em 2019, porém, no Egito dos anos 1950, eles eram tão controversos quanto poderiam ser. No entanto, a decisão de criar uma história em torno deles deu origem a uma das obras-primas cinematográficas do mundo árabe.
Exibido durante uma retrospectiva da carreira do diretor egípcio Youssef Chanine no Festival de Karlovy Vary 2019, “Estação Central de Cairo” é um filme enganosamente simples que esconde um coração rebelde. Apesar de ter sido aclamado no Festival de Berlim de 1958, onde estreou, não encontrou amor imediato do público no Egito após seu lançamento.
Na superfície, trata-se de um conto de amor não correspondido. O sem-teto Qinawi (Chahine) é encontrado nas ruas pelo proprietário da banca de jornal Madbouli (Hassan el Baroudi) e contratado para vender jornais no movimentado local do título, onde se apaixona por Hanuma (Hind Rustum), uma vendora de refrigerantes. Ela certamente gosta da atenção, mas não esconde que ama outro homem, Abu Siri (Farid Shawqi), de quem está noiva. Tímido e introvertido, Qinawi fica mais obcecado com a garota com o passar dos dias e começa a tentar conquistá-la a qualquer custo.
CLASSES SOCIAIS E SEXO: TABUS EM DEBATE
Há tantos subtextos em jogo aqui que eles podem ser perdidos facilmente. Como afirmou o curador da retrospectiva, Joseph Fahim, ao introduzir o filme em Karlovy Vary, o Egito não estava acostumado a ver a realidade sem glamour da vida cotidiana nas telas. “Estação Central de Cairo” quebra esse paradigma concentrando-se nos pobres e marginalizados da sociedade: os sem-teto e a classe trabalhadora estão no centro da tentativa de Chahine em questionar o que significa ser egípcio.
Batendo de frente com as visões religiosas de seu tempo, o roteiro de Mohamed Abu Youssef e Abdel Hai Adib permite que Hanuma dê voz às mulheres que assumem seus desejos e lutam contra o papel que lhes foi atribuído pelo patriarcado. Ela é retratada como alguém que gosta do olhar masculino, tem uma vida sexual antes do casamento e desafia orgulhosamente as normas. Sempre perseguida pela polícia por vender refrigerantes em locais proibidos, nem mesmo a lei parece impedi-la.
Seu desfrute do sexo é contrastado pela repressão sexual absoluta à qual Qinawi está sujeito. Ele deseja Hanuma de uma maneira que nunca poderá ter. Quer se casar com ela, claro, mas as fotos de pin-ups que ele recorta de revistas e prega nas paredes de seu quarto sugerem que ele se contentaria com uma vida de devassidão se a sociedade permitisse.
Suas histórias se entrelaçam com várias outras em uma movimentada estação de trem, misturando as abordagens da Era de Ouro de Hollywood e do neorrealismo italiano para criar um híbrido orgulhosamente árabe, apesar das críticas que faz à sua própria sociedade. “Estação Central de Cairo” é o produto de um cineasta que se atreve a pedir a seu próprio país que se olhe no espelho. Os resultados provocaram uma revolução que ressoa até hoje.
*O jornalista viajou para o Festival de Karlovy Vary como parte da equipe do GoCritic!, programa de fomento de jovens críticos do site Cineuropa.