Em dado momento de “O jovem Karl Marx” (Le jeune Karl Marx, 2017), o personagem-título (August Diehl) e seu bróder Friedrich Engels (Stefan Konarske) discutem. O tópico: a eficácia de um conteúdo simples e direto para guiar um público de pouca ou nenhuma escolaridade através dos meandros de uma revolução que trouxesse a vitória à explorada classe trabalhadora. Marx questiona a eficiência da tarefa, ao passo que Engels frisa a necessidade de um pequeno e didático manifesto comunista. Um dilema semelhante parece ter passado pela mente de Raoul Peck ao realizar esse filme.

VEJA TAMBÉM: O Jovem Karl Marx é a nova atração do projeto Cinema de Arte em Manaus

Peck dirigiu um dos melhores filmes do ano retrasado, “Eu não sou seu negro” (I Am Not Your Negro, 2016); não por acaso, o documentário trouxe uma crítica mordaz à estruturas sociais então hegemônicas, abordando, nesse caso, o racismo institucionalizado. O formato do longa, tal como seu conteúdo, tinha certo peso e ousadia. Em “O jovem Karl Marx”, esta última passa longe. O roteiro, assinado por Peck e Pascal Bonitzer, escolhe o caminho seguro das cinebiografias atuais de selecionar apenas um recorte de tempo específico, assinalado pelo título do filme. Porém, ao contrário de Jackie (idem, Pablo Larraín, 2016), o resultado final é, não fosse o cuidado com detalhes, quase tradicional demais.

ANARQUISMO E BROMANCE

Acompanhamos em “O jovem Karl Marx” o início da amizade entre ele e Engels e a criação do mito em torno de ambos, culminando com o surgimento do manifesto comunista. Nesse meio tempo, ilustra-se a contento a situação indigna dos trabalhadores das fábricas no século XIX, a perseguição aos intelectuais e revolucionários e os embates ideológicos dentro desse grupo diverso. Tal ponto é o que concede maior liga ao filme, posto que vemos o intercâmbio entre o duo Marx e Engels e figuras como Weitling (Alexander Scheer), Bakunin (Ivan Franek) e Proudhon  (Olivier Gourmet) e compreendemos melhor as raízes do trabalho desses pensadores. Prodhon, aliás, é de longe o coadjuvante mais emblemático do filme. Já Jenny Marx (Vicky Krieps) e Mary Burns (Hannah Steele) ajudam a contextualizar pontos-chave da trama.

Falando das companheiras de Marx e Engels, Peck permite que o espectador perceba o quão significativas são para a história do movimento, mas não permite um maior aprofundamento. Ainda que o tempo de tela concedido a elas seja diminuto, são ilustradas de forma cativante: o ambiente familiar é predominante, mas vemos uma Jenny atuante nas discussões e promoções das atividades do grupo comunista; Mary, exposta como uma mulher libertária e de forte identificação com os ideais do grupo, é um personagem magnético e, ao mesmo tempo, funcional, indo e vindo quando convém à história dos homens. Exemplo disso é quando, logo no início do longa, ela se  revolta contra o patrão – pai de Engels – numa fábrica, o que guia o pensador a conhecer a realidade dos trabalhadores explorados numa condição que ele define como “escravidão moderna”.

Filmes sobre questões políticas tendem a se tornar maçantes quando mostram as discussões em si, com longos diálogos em tela. No caso de “O jovem Karl Marx”, acontece justamente o contrário.

O bromance entre Mark e Engels é, este sim, o foco do filme, de maneira que soa estranho o título do longa citar apenas um deles. De certa forma, Engels se mostra até um personagem mais multifacetado, uma vez que seu conflito entre criticar a burguesia e fazer parte dela é desenhado no roteiro e desenvolvido num arco de amadurecimento. Marx, por sua vez, é apresentado como um personagem mais plano, que, embora dobrado pela pobreza, tem convicções firmes. O charme de Diehl, assim como a química entre ele e Konarske, garante que esse desequilíbrio no desenvolvimento dos personagens não gere grandes incômodos.

Filmes sobre questões políticas tendem a se tornar maçantes quando mostram as discussões em si, com longos diálogos em tela. No caso de “O jovem Karl Marx”, acontece justamente o contrário. Ver ele e Engels enriquecendo e fundamentando as ideias um do outro, acompanhar o limite da influência do pensamento de Proudhon no trabalho de ambos, ou nos empolgarmos com as falas inflamadas (embora pouco fundamentadas) de Weitling estão entre os pontos altos num filme que, no fim das contas, é sóbrio demais para uma temática que suscita tanto amor e ódio.

PROFESSORAL POR NECESSIDADE?

Num mundo em que se “conhece” política via correntes de Whatsapp e memes de Facebook, esse tom professoral e ilustrativo de “O jovem Karl Marx” é meio que perdoável. Tudo na trama é bem mastigado ao seu público, como bem vemos nos conflitos (divertidíssimos) entre utópicos e científicos, com os anarquistas correndo por fora (o equivalente do povo de Humanas aos cameos em filmes de super-heróis). O mesmo acontece nos momentos em que offs imponentes destacam trechos elementares dos escritos de Marx, em especial, do manifesto comunista.

O resultado é um longa pouco inspirado em termos de uso de linguagem fílmica, ainda mais se considerarmos o trabalho anterior de Peck. O esmero da direção de arte e reconstituição de época como um todo é elogiável, mas falta fibra e paixão para contar histórias com personagens tão idealistas e impactantes para a História com H maiúsculo. Se o intuito é, porém, introduzir ao público linhas gerais do pensamento desses intelectuais de forma simples e pedagógica, o longa é uma bem-vinda ferramenta; pelo menos, é uma fonte mais segura que certas páginas em redes sociais, garanto…

Ainda assim, “O jovem Karl Marx” respira sem ajuda de aparelhos em alguns momentos. Cena interessante é o confronto de ideias entre Engels e Marx com um dono de fábrica na entrada de um clube. O homem defende a obrigatoriedade do trabalho infantil pois, caso contrário, todo o sistema de produção das fábricas se tornaria inviável. A ideia, hoje comprovadamente absurda, ressoa em como vemos o capitalismo e suas mazelas como única via possível de ordenação da economia e da sociedade. É uma das sacadas mais inteligentes e mordazes do roteiro, e que demarca o potencial do que ele poderia ter sido caso ousasse mais.