Todos temos uma lista de coisas que nos deixam com um pé atrás em relação a algum filme. Pegue este Projeto Adam, por exemplo. Talvez você tenha alguma suspeição ligada a filmes lançados pela Netflix, com seu modelo de produção regido por seja lá o que seus algoritmos indicam como necessário para perpetuar um fluxo de conteúdo constante na plataforma; talvez você seja alérgico ao trabalho do Shawn Levy, que, seja dirigindo Free Guy ou produzindo Stranger Things, parece ser atraído à criação de histórias genéricas que derivam seu apelo da referenciação a obras superiores; ou ainda, talvez você não suporte o Ryan Reynolds, que com seus personagens sarcásticos e irônicos, cuspindo ininterruptamente piadas meta-textuais, parece ser uma espécie de encarnação desse tipo de produção que usa a ironia e a referenciação constantes como subterfúgio para a própria mediocridade. 

Mas então, de tempos em tempos, você encontra um filme que cumpre todos esses requisitos e, mesmo assistindo-o contra sua vontade (no meu caso, eu tinha este texto para escrever), no fim da projeção você se pega pensando: “é, rapaz, até que foi legal!”. Foi o cenário no qual me encontrei na última noite de sábado, enquanto os créditos subiam na tela da TV e minha mãe e meu irmão comiam pedaços da minha torta de aniversário. Essa, inclusive, é provavelmente a forma ideal de assistir a esse tipo de entretenimento que parece ser esquecível por design. 

Na trama, a viagem no tempo foi inventada e o futuro é um lugar terrível (que o filme nunca nos mostra). Adam (Reynolds) é um piloto que, ao melhor estilo O Exterminador do Futuro, precisa voltar no tempo para impedir que o mundo degringole. Contudo, ele retorna para 2022 por acaso, onde precisa lidar não só com si mesmo aos 12 anos (interpretado por Walker Scobell em uma performance que capta muito bem a persona do Reynolds, para o bem e para o mal), como também questões em aberto na relação com os pais (Jennifer Garner e Mark Ruffalo). 

 ESSÊNCIA NO MELODRAMA

Se a ideia de termos duas encarnações diferentes de um personagem tipicamente “reynoldseano” no mesmo filme te parece desanimadora, é com razão, caro leitor. Não só isso, como a versão pubescente do personagem é a mais insuportável possível. Mas se disse acima que este é o típico filme do “até que foi legal!” é porque, dessa vez, o jeito irônico do protagonista aparece intimamente ligado às maquinações melodramáticas da narrativa. 

O melodrama é pautado por um jogo entre pontos-de-vista que não podem se conciliar: um casal briga e se separa momentaneamente, até que, ambos arrependidos, um já não consegue encontrar o outro em meio a uma grande turba; ou a mocinha que guarda um segredo que não pode revelar ao mocinho, que, alheio a esse fato, julga estar sendo preterido pela amada (e é claro que esse segredo, em um verdadeiro melodrama, só será revelado quando for tarde demais). 

Temos um cenário, então, tipicamente melodramático aqui: Adam cresce sem saber dos reais sentimentos que o pai nutria por si, já que este não foi exatamente um grande exemplo presente. O dispositivo narrativo da viagem do tempo, neste sentido, casa perfeitamente com o melodrama da situação: mesmo que os personagens possam saltar de um ano para o outro, a marcha inexorável do tempo segue seu rumo em direção ao esquecimento.

SARCASMO DILUÍDO NO DRAMA

Na verdade, toda a dinâmica familiar que ocupa o centro do filme representa o melhor que o longa tem a oferecer. O tratamento do Levy a isso tudo é bem feijão com arroz, mas, também, não é preciso muito para fazer esse tipo de coisa funcionar se você conta com um elenco desses: Ruffalo vem destilando seu charme de paizão na meia-idade já há algum tempo; Garner projeta toda uma aura de amabilidade, bem como de frustração pela incomunicabilidade com o filho pubescente, com muito sucesso no pouco tempo de tela que tem; e, finalmente, Reynolds talvez tenha seus melhores momentos como ator quando pode operar nesse modo mais melancólico. 

Ferido à bala, com olheiras e barbudo (a barba é a opção clássica de Hollywood quando precisam mostrar que o herói está sofrendo), as piadas espertinhas e altamente referenciais – que já se tornaram parte da sua persona fílmica desde, pelo menos, Deadpool – podem ser encaradas aqui como espécies de pedidos de socorro. Assim, embora ele traga seu humor típico para o personagem, o sarcasmo é diluído porque é encarado, sobretudo, como forma necessária de distanciamento em relação às feridas emocionais. Por isso que, na dinâmica de buddy movie que se estabelece entre os Adams adulto e adolescente, é a versão mirim que desempenha o papel do falastrão, enquanto Reynolds serve de veterano cansado. 

A questão é que nada disso pode ir a lugar nenhum porque “Projeto Adam” em si precisa das piscadelas para o público e das piadas calculadas: a referencialidade e a derivação se tornaram a única forma de produzir um filme pipoca em um mundo onde cada segundo de projeção precisa ser, antes de tudo, conteúdo transmidiático. Ainda assim, um diretor mais hábil – alguém que verdadeiramente tivesse tesão por contar histórias – conseguiria trazer à tona toda uma dimensão de sofrimento numa cena cômica como aquela em que o Adam adulto e seu pai, que ele não vê há quase 40 anos, começam a trocar socos em um campus universitário. 

MODUS OPERANDI DA INDÚSTRIA


Estranhamente, eu ficava me lembrando do último Pânico, lançado também este ano, ao longo da projeção. Primeiro, porque tanto naquele filme como neste temos personagens centrais que fazem uso de bombinhas de asma – aqui, no caso, a versão mirim do Adam (fico com a impressão de que, nos últimos 10 anos, a utilização de personagens asmáticos e suas bombinhas como plot devices cresceu exponencialmente, por algum motivo obscuro); depois, e de maneira mais geral, pelos modos através dos quais a franquia Pânico e este Projeto Adam lidam com a autoconsciência dentro de seus respectivos gêneros. 

Para começo de conversa, a metalinguagem e autoconsciência tinham ares de novidade em 1996, quando o primeiro Pânico foi lançado. Em 2022, esse tipo de humor é, como já dito, obrigatório para as produções. Mas se a franquia iniciada por Wes Craven consegue se manter relevante ainda hoje (e eu gostei do último filme da série, diga-se), é porque traz como cerne emocional a triste noção de que, por mais que aqueles personagens saibam que estão dentro de um filme, nada pode impedir que o terror se repita ad infinitum – ou, pelo menos, enquanto os filmes renderem grana aos estúdios. 

Já o modus operandi desse Projeto Adam, bem como de toda uma safra de obras contemporâneas (dos alívios cômicos dos filmes da Marvel à paródia escrachada de um Deadpool da vida, passando pelo apelo nostálgico de produções como Stranger Things e Ghostbusters – Mais Além) parece se aproximar daquilo que David Foster Wallace, em seu “E Unibus Pluram: Television and U.S. Fiction”, identificou como um modo de ironia próprio da televisão: por precisar fundar um senso de comunidade entre espectadores isolados em suas respectivas casas, a TV lança mão da ironia – seja na forma da autorreferências de programas que tratam do mundo televisivo, seja no humor irônico de programas que se reconhecem enquanto tal – como forma de criar uma identidade de grupo, fundamental para a audiência, entre aqueles que “entendem a piada”, que estão por dentro do que os programas tratam. 

Shawn Levy, o diretor de Projeto Adam, tem defendido em entrevistas que seus últimos filmes provam que há espaço para conteúdo original no cinema contemporâneo e a intenção dele é fazer filmes com verdadeira força emocional. O que ele parece não se dar conta é de que opera dentro do conforto de uma lógica derivativa que serve, antes de tudo, como forma de criar esse frágil laço com um espectador que, mesmo no espaço público, vive isolado com seu smartphone – um espectador que curte estar por dentro das referências e das alusões, mas que, logo em seguida, afogando-se no oceano de títulos disponíveis na sua plataforma de streaming favorita, esquecerá prontamente de qualquer coisa relacionada ao filme. 

Por outro lado, talvez o importante, no fim das contas, é que assistamos ao longa em família enquanto pedaços de tortas de aniversário são devorados, e que nossas mães possam dizer terem gostado bastante do filme ao final da projeção.

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