Antes do reencontro triunfal de “Tudo Sobre Minha Mãe”, Pedro Almodóvar acertou as contas com o passado recente da Espanha – e o seu próprio – em uma obra que marcou a mudança para a fase mais madura de sua filmografia.

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Em “Carne Trêmula” (1997), o film noir, antiga paixão de Almodóvar, é a referência central em uma trama que discute identidade, destino e o sempre presente desejo. Baseado num romance da escritora policial Ruth Rendell, o filme intercala as histórias de Victor (Liberto Rabal) e David (Javier Bardem), que têm as vidas entrelaçadas por um episódio trágico, o qual só desfechará suas consequências definitivas anos depois. Tal como em “A Lei do Desejo”, seu ensaio anterior sobre o universo masculino, “Carne Trêmula” é marcadamente mais sombrio e melancólico do que a obra habitual do diretor. A trama atravessa duas décadas, indo de 1970, nos estertores do regime Franco, até 1996, quando as últimas restrições da ditadura foram enfim abolidas pelo parlamento espanhol – o mesmo frame entre a chegada do jovem Pedro a Madri e a construção de sua obra emblemática. Ainda que não atinja as alturas superlativas dos filmes seguintes, “Carne Trêmula” é belo e poderoso, e uma das obras mais acessíveis do gênio espanhol.

A perfeição formal e a vasta jornada emocional de “Tudo Sobre Minha Mãe” fizeram do filme o maior sucesso da carreira de Pedro Almodóvar, até hoje, inclusive. Mas são suas obras seguintes a verdadeira essência do cinema almodovariano.

fale com ela pedro almodovar“Fale com Ela” (2002) – na opinião deste que vos fala, o maior filme de Pedro Almodóvar – é uma das obras mais humildes e, ao mesmo tempo, mais profundas do artista. Uma trama simples (ou que esconde sua complexidade sob um engenhoso despojamento), mas cheia de ressonâncias e significados, “Fale com Ela” inaugura a parceria com o ator Javier Cámara, um de seus grande intérpretes, e combina um roteiro lapidar com uma direção sensível e elegante, em nada lembrando os excessos de “Kika”.

Novamente, uma tragédia une os destinos de dois homens. Marco (o argentino Darío Grandinetti) e Benigno (Cámara) se conhecem numa clínica para pacientes em coma, que abriga as mulheres por quem ambos são apaixonados. Esse é o ponto de partida para uma tocante meditação sobre relacionamentos, com referências ao cinema mudo, diálogos antológicos (“Somos mais felizes que a maioria dos casais”, diz Benigno sobre sua “noiva” inconsciente), participação especial de Caetano Veloso (paixonite do diretor desde pelo menos “A Flor do Meu Segredo”) e, principalmente, uma história irresistível, que se desvela sem pressa, ficando mais emocionante a cada avanço. A própria técnica de Almodóvar, antes o artista hiperativo de “O que Eu Fiz para Merecer Isto?” e “De Salto Alto”, atinge um despojamento e elegância que beiram a perfeição. Provavelmente o auge do autor espanhol, mais criativo e senhor de seus recursos do que nunca – e que, a essa altura, passa a ombrear com os maiores diretores europeus, com uma obra não somente inovadora artisticamente, mas transmitindo uma gama riquíssima de experiências humanas.

Provando que o enfant terrible do cinema espanhol havia finalmente atingido a maturidade, o seu filme seguinte é um prodígio de roteiro e técnica, sem – absolutamente – nada do exibicionismo de algumas obras de sua primeira fase. Pelo contrário. O ritmo compassado, misterioso, as revelações que surgem quase por obra do acaso, os personagens complexos, num jogo de identidades que remete a um labirinto de espelhos, nada é gratuito ou vulgar em “Má Educação” (2004). Seu passeio definitivo pelo noir, e uma das obras mais extraordinárias do diretor, o filme abre, mais explicitamente do que qualquer outro, uma janela para a vida pessoal de Almodóvar.

Ambientada nas décadas de 1960 e 70, a história narra o trágico amadurecimento dos meninos Ignacio (Gael García Bernal) e Enrique (Fele Martínez), num severo internato católico. Um amor proibido, assolado pelas investidas do padre diretor, Manolo (Daniel Giménez Cacho), que está apaixonado por Ignacio, a relação dos dois irá moldar destinos muito diferentes, mas assombrados pelos mesmos fantasmas. O próprio diretor afirmou que passou quase dez anos burilando o roteiro, excepcional, e que confronta, pela primeira e única vez em sua carreira, os rumores de abuso sexual que ele teria sofrido na infância. Uma obra corajosa, de intensa sensibilidade, “Má Educação” é mais um produto impecável da melhor fase do cineasta.

volver penélope cruz pedro almodóvarContinuando a colher os frutos do novo estilo, Almodóvar voltou ao cinema “de mulheres”, às narrativas sobre a força e solidariedade femininas, com “Volver” (2006). Nota-se aqui, até pelo nome do filme, a simbologia de um círculo – como em todos os grandes autores, o cinema de Almodóvar retorna sempre aos mesmos temas, acrescentando, a cada jornada, a carga da sabedoria conquistada, da vida vivida. Como “Educação”, “Volver” é mais uma palavra definitiva sobre um tema essencial na filmografia do diretor. Raimunda (Penélope Cruz), a filha Paula (Yohana Cobo) e a irmã Sole (a irresistível Lola Dueñas) enfrentam as agruras da vida na região de La Mancha (terra natal do diretor), local onde os homens são literalmente dispensáveis: ou estão mortos, ou abandonaram suas companheiras, restando às viventes ajudar umas às outras. Uma história sobre amizade e família, “Volver”, além da joia cinematográfica que é, marca também o reencontro de Almodóvar com sua atriz mais emblemática: Carmen Maura, a grande parceira do jovem diretor na década de 80. Mesmo rompidos, coube a ela dar vida a Irene, a mãe de Raimunda e Sole, já falecida, mas que volta para reatar os laços com as filhas. Pena que os laços entre ela própria e Almodóvar sigam irremediavelmente cortados.

Vindo, portanto, de uma sequência de cinco filmes excepcionais, Pedro Almodóvar chegou a um novo impasse em sua carreira. Impasse este que atende pelo nome de “Abraços Partidos” (2009). Uma obra onde o excesso mais uma vez predomina, “Abraços” se perde entre inúmeras tramas e registros, soando cansativo e sem vida. Renovando a parceria com Penélope e resgatando Lluís Homar, de “Má Educação”, o filme bem que tenta, mas a carpintaria narrativa de Almodóvar, em geral tão sofisticada, acaba desaguando num… a palavra é dura, mas lá vai: novelão. Nem mesmo a bela fotografia ou o ótimo elenco – sobretudo Penélope, que rouba todas as cenas em que aparece – conseguem levantar o material ruim que Almodóvar concebeu desta vez. Junto com “Kika”, talvez o filme menos interessante do diretor.

a pele que habito antonio banders pedro almodóvarAparentemente, sem sentir mais a pressão para ser “Almodóvar”, como lhe ocorreu na virada dos anos 80 para 90, o diretor fez mais uma mudança radical de rumo, indo de encontro a um gênero que, até agora, lhe parecia improvável: o thriller. A Pele que Habito (2011) surpreendeu a todos com seu senso de atmosfera e sua trama desvairada, sob todos os aspectos, mas que se desenrola à perfeição, provocando genuína surpresa à luz de seu grande segredo. Quem volta, aqui, é Antonio Banderas, longínquos 20 anos depois da maravilhosa parceria em “Ata-me!”, como o vilão do filme, o cirurgião Robert Ledgard. Discutindo de forma personalíssima desejo – sempre ele! – e gênero, “A Pele que Habito” é Almodóvar de primeira, caviar cinéfilo, com a belíssima estampa de Elena Anaya no rótulo.

Eis que chegamos ao último filme de Pedro Almodóvar – ao menos, enquanto não sai “Silencio”, seu já anunciado 20º longa-metragem, no qual, segundo o próprio, teremos um retorno ao “cinema de mulheres”, de seus longas mais célebres. Os Amantes Passageiros (2013) é uma comédia ligeira e esfuziante, e sua incursão mais “pura” no gênero até aqui. Deixando de lado a ambição e os amplos panoramas humanos que marcaram a sua filmografia, Almodóvar, em “Amantes”, está preocupado tão somente em fazer rir. O que talvez explique a reação unânime da crítica à obra – não me lembro de uma resenha positiva, seja aqui, nos Estados Unidos, na Espanha ou onde mais eu pude olhar. Longe de envergonhar, porém, “Amantes” soa como uma grande brincadeira, uma piada espirituosa do diretor sobre a incerteza econômica que aflige a Espanha, simbolizada aqui por vários tipos pitorescos, à deriva depois que o avião onde embarcaram revela ter um defeito potencialmente devastador. Mais uma vez, o filho dileto da Espanha, de Buñuel e do flamenco, mas também da cultura pop, de Douglas Sirk e do glam rock, desfere suas pontadas ferinas, ainda que cheias de energia e terno esprit. Não cometa a mesma injustiça dos críticos.

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E chegamos, também, ao fim de nossa travessia pela obra do icônico artista espanhol. Em Pedro Almodóvar, as grandes questões humanas se cruzam e se realimentam, iluminando a experiência – a vida – de quem assiste a uma de suas obras. Suas corajosas afrontas ao status quo franquista, as tentativas pioneiras de retratar a homossexualidade no cinema como uma condição humana – como desejo, puro e simples – e não como uma maldição, a empatia com os dilemas e o desejo de autonomia das mulheres, a exposição da brutalidade e covardia de uma sociedade patriarcal, a investigação madura dos dilemas e impasses humanos, todos os matizes ganham tonalidades mais intensas e mais belas nos filmes do diretor. Com Almodóvar, o cinema é deslumbramento, é intoxicação – é bálsamo, com uma salutar pontada de veneno. Mergulhar em sua obra é conhecer e se assombrar com a variedade da vida humana, com seus dramas, sua luta, com seu riso, seu prazer. É ter a satisfação, sobretudo, de sair dela mais completo, mais pleno, como que banhado por um sol, belo, como poucos na vida. Almodóvar é o sol do cinema. Que bom que seus filmes existem.