Num ano tão tumultuado e atípico para o cinema quanto 2014, claro que os seus escândalos e confusões também tinham que acontecer em escala sísmica. Invasão de hackers, roupa-suja nos jornais, controvérsias no Oscar, homofobia, enfim, um rol fascinante de tretas que o Cine Set relembra agora em sua retrospectiva.

12 anos de escravidão oscar 2014

Oscar: o melhor filme que os jurados não viram

Tensões raciais nos EUA sempre foram um combustível para o Oscar, o qual, de uns tempos pra cá, anseia por ser a vitrine da América tolerante, reconhecendo e valorizando o talento negro, mesmo que isso implique em escolhas controversas nas suas categorias (não foi o caso, porém, em 2002, quando Denzel Washington e Halle Berry levaram os principais prêmios de atuação em meio a concorrentes inferiores).

O imbróglio desse ano foi por causa de 12 Anos de Escravidão. Desde as suas primeiras aparições em festivais, o drama de Steve McQueen, que retrata com crueza e tintas fortes a história do violinista tornado escravo Solomon Northup (Chiwetel Elijofor), já despontava como favorito da Academia, nem tanto por suas qualidades fílmicas (que são muitas), mas mais pelo indisfarçável paternalismo dos votantes.

Deu no que deu: o jornal Los Angeles Times divulgou que alguns dos jurados votaram no filme sem sequer tê-lo visto, apenas por causa da “relevância do tema”. Uma pena para este belo trabalho, que não precisava de polêmica para impor a força de sua história.

woody allen polêmicas cinema 2014Woody Allen, Dylan Farrow e a intimidade aberta à visitação pública

2014 poderia ter sido um ano grandioso para Woody Allen. Com um filme bem-recebido pela crítica (Blue Jasmine), uma atriz vencedora do Oscar (Cate Blanchett), homenagem pela vida e obra no Globo de Ouro, além das comemorações dos 45 anos de sua estreia na direção, o autor americano estava de vento em popa. Até que, antecipando-se à folia, sua filha adotiva, Dylan Farrow, indignada com as celebrações, decidiu demoli-lo por escrito.

Reacendendo o rumoroso caso de pedofilia que manchou sua carreira no início dos anos 90, Dylan afirmou, no blog do jornal New York Times, que Woody a havia molestado durante uma visita à casa da mãe adotiva, a atriz (e ex de Woody) Mia Farrow, quando ela teria sete anos de idade.

O episódio esfriou geral. A homenagem no Globo de Ouro acabou sendo um constrangimento, assim como a estatueta de Cate Blanchett. A imprensa caiu em cima, repercutindo o desabafo de Dylan em escala global, e arranhando, mais uma vez, a reputação do diretor. Pouca gente deu bola quando Allen quis contar versão da história, ou quando o irmão mais velho de Dylan, Moses, afirmou, com todas as letras, que Mia teria inculcado memórias falsas na irmã durante a longa disputa judicial que sucedeu ao divórcio dos dois. Ou, como Ruy Castro lembrou em artigo na Folha, que a Justiça americana já havia examinado exaustivamente a questão e dado o suposto abuso como uma inverdade. Não importa. Woody Allen vai ter de viver com a pecha de pedófilo daqui pra frente.

praia do futuro homofobia cinema 2014

Homofobia nos cinemas brasileiros: “AVISADO”

No maravilhoso caldeirão de raças, opções sexuais e religiosas e tolerância à toda prova que é o Brasil, alguém apareceu para estragar a festa. Um jovem e incauto cinéfilo da Paraíba quis comprar um ingresso para Praia do Futuro, o grande filme de Karim Aïnouz com Wagner Moura, lançado neste ano. O atendente da bilheteria, intrigado com a escolha, perguntou: “Senhor, tem certeza de que deseja ver esse filme?”. Ao que o rapaz respondeu: “Sim, sem problemas”. O ingresso veio carimbado com uma advertência: AVISADO.

Tudo isso para que o jovem soubesse que Praia do Futuro tinha cenas de amor gay, em que Moura e o alemão Clemens Schick se beijam, trocam carícias e até andam nus dentro de casa. Claro que, por conta disso, o filme, que já tinha uma perspectiva de bilheteria bem pequena, naufragou de vez. O episódio chegou a inspirar uma pequena campanha anti-homofobia na internet, mas o desinteresse implacável do público silenciou a obra de uma vez por todas, empurrando a polêmica pra debaixo do tapete, e permitindo que o Brasil voltasse a festejar alegremente a solidez de sua democracia social.

ninfomaniaca lars von trier

“Ninfomaníaca”: Lars Von Trier e o saudável desprezo pelo bom-mocismo

Se tem um cineasta que consegue ser ainda mais polêmico e ultrajante a cada filme, este é Lars Von Trier. Acusações de sadismo contra suas atrizes principais, insulto a judeus no festival de Cannes, um filme cujo título explica mais sobre sua obra do que qualquer livro: Anticristo. E mesmo assim o dinamarquês segue fazendo trabalhos brilhantes, como este aqui, que eleva à enésima potência a opção pelo choque e o desprezo ao bom-mocismo tão característicos de sua obra.

A trama, que conta a jornada de Joe (Stacy Martin na adolescência, Charlotte Gainsbourg na maturidade), de suas primeiras inclinações de menina ao furor sexual da idade adulta, é narrada como um livro, em que os capítulos transbordam de alusões literárias, musicais e filosóficas, para tentar analisar a natureza da ninfomania. O tema seria cabeçudo, não fossem a agilidade, a ironia e altíssima carga erótica que o diretor e seu elenco emprestam à história, criando um dos filmes mais interessantes – e polêmicos, claro – de 2014.

Como não poderia deixar de ser, os cinemas do mundo todo ficaram melindrosos em exibir a obra, que teve o corte original modificado e atenuado para ganhar um lançamento oficial. Mas Von Trier não se deu por vencido: a Versão do Diretor vem aí, pronta para assombrar os papalvos.

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Angelina Jolie: câncer e o “desmusamento” da musa

O que 2014 não foi para Woody Allen, foi para Angelina Jolie. Mas à custa de uma tragédia: a morte prematura da mãe, a atriz Marcheline Bertrand, por câncer de mama em 2007. Alarmada com essa e outras mortes mais recentes em sua família, a atriz tomou uma decisão, à primeira vista, radical: removeu os seios, dos mais cobiçados de Hollywood e do mundo inteiro.

A decisão sumária foi para prevenir a possibilidade de câncer, doença com alta incidência em seu histórico familiar. O ato extremamente incomum e corajoso da musa gerou manchetes no mundo inteiro, provocando uma onda de apoio e encorajando milhões de mulheres a encarar a temida mastectomia, um procedimento que, de início, abala a autoestima de muitas pacientes, mas que também reduz drasticamente as chances da doença se desenvolver.

A atriz também encabeçou um megasucesso mundial, a aventura Malévola, que foi a maior bilheteria nacional em 2014 e uma das maiores do box office mundial. Fechando o ano brilhante, sua segunda incursão como diretora, o drama Invencível, surge com fortes pretensões às categorias principais do Oscar. Ou seja: em 2015, a musa que se “desmusou” corajosamente diante do mundo pode estar esbanjando mais saúde do que nunca.

a entrevista coreia do norte

“Sonygate”: Coreia do Norte 1 X 0 Liberdade de Expressão

Essa ficou por último por ser a mais manjada: os acontecimentos ainda estão frescos na memória dos cinéfilos.

Tudo começou por causa de um filme (mais um) da dupla bromancer oficial de Hollywood: Seth Rogen e James Franco. O novo trabalho da dupla, A Entrevista, satiriza sem dó o regime fechado e algo caricato do ditador-prodígio da Coreia do Norte, Kim Jong-Un. Este, claro, com o humor ditatorial característico, sentiu-se ultrajado com a película, e, pouco depois do anúncio da data de estreia do filme, um misterioso ataque hacker levou a público vários esqueletos no armário da Sony Pictures, estúdio responsável pela obra.

Entre outras coisas, um e-mail hilariamente braindead de Channing Tatum, outros nem tanto de Amy Pascal, co-presidente da empresa, que inclusive chama a querida Jolie aí em cima de “criança mimada”, dados sobre negociatas do estúdio (o imbróglio Sony/Marvel pelos rumos do Homem-Aranha no cinema) e da vida íntima das estrelas, como seus nomes falsos para reservas em hotéis e a inscrição de Sylvester Stallone na seguridade social.

Pior: pressionada por ameaças de atentados nos cinemas que exibissem o filme, e com medo de novas revelações, o estúdio decidiu cancelar o lançamento da obra, uma triste capitulação da liberdade de expressão diante da covardia e da boçalidade política. Até esta semana, o placar ficou assim: Coreia do Norte, 1. Liberdade de expressão e humor, mesmo grosseiro, 0.

A decisão da Sony foi criticada até pelo presidente Barack Obama. Mas houve (há) um final feliz: todo o marketing causado pela crise levou a A Entrevista a ter o lançamento mais badalado do cinema neste finzinho de ano. Mesmo em um número reduzido de cinemas, a obra foi, de fato, lançada, e a Sony se valeu da comoção gerada na internet para fazer um megalançamento em plataformas online. Diz-se que em Hollywood até o Holocausto vira carne de vaca, reduzido ao banal e convertido em mera isca para bilheterias vultosas. Nesse caso, para o bem de todos, que bom que tenha sido assim.

* Texto original alterado para substituir a equivocada expressão humor negro.