Faleceu neste dia 12 de novembro de 2018 Stanley Lieber, o homem que entrou para a história da cultura pop como Stan Lee (1922-2018). O escritor, roteirista e editor da Marvel Comics se tornou uma figura importantíssima não apenas para a indústria de quadrinhos norte-americana, mas também para a indústria do cinema. Sem Stan Lee, não haveria Universo Marvel, nem nas páginas nem nas telas, e como seria o mundo hoje sem a Marvel? De minha parte, não consigo nem imaginar.

E o mais impressionante na trajetória dele é que, a princípio, ele não queria nem saber de quadrinhos. Quando começou a trabalhar na Marvel, como office boy e porque era sobrinho de um dos donos da empresa, ele era apenas um molecote com ambições de, um dia, escrever “o grande romance americano”. Como geralmente ocorre na vida, circunstâncias que não planejamos ou esperamos acabam por determinar nossos caminhos, e Lee terminou por trabalhar com essa forma de arte tão desprezada, onde não dava para se ficar rico e famoso. Ou assim parecia…

Naquela época, a empresa ainda se chamava Timely Comics, e isso era em 1939. Lee conta que, quando chegou para trabalhar no primeiro dia, a empresa se resumia a um escritório, com Jack Kirby e Joe Simon, os criadores do Capitão América, trabalhando lá. Sua primeira missão foi comprar sanduíches para os dois almoçarem.


Stan Lee, Jack Kirby e Steve Ditko nos anos 1960: polêmicas cercam a parceria histórica

Quando ambos deixaram a Timely por desavenças quanto à compensação pelo trabalho – uma triste característica da indústria norte-americana de HQs – Lee tornou-se editor e roteirista. Acabou trabalhando lá por vários anos, com apenas um intervalo para servir ao exército na Segunda Guerra Mundial, escrevendo HQs de romance, faroestes, qualquer coisa. Naquela época, a Timely seguia o que estivesse na moda, e os seus primeiro super-heróis, onde se incluía o Capitão América, estavam cobertos de naftalinas, ignorados. Ele assinava esses quadrinhos como Stan Lee porque queria que seu nome completo um dia estivesse na capa de um livro de verdade.

Então, pulamos para o começo dos anos 1960, a década que mudou tudo. De saco cheio dos quadrinhos, Lee iria se demitir. Foi quando Martin Goodman, chefe da editora, lhe disse para prestar atenção na Distinta Concorrência: a empresa de quadrinhos rival, a DC Comics, estava ganhando uma boa grana com a revista da Liga da Justiça, um grupo de super-heróis, e Goodman sugeriu a Lee que criasse algo parecido. Lee não queria, mas encorajado pela esposa Joan – que os deuses dos quadrinhos a abençoem! – resolveu chutar o balde e fez uma revista nova, com personagens revolucionários. Em novembro de 1961, foi publicado Fantastic Four 1, a primeira revista do Quarteto Fantástico. Com o estranho e marcante traço de Jack Kirby, o Quarteto era bem diferente da Liga: os heróis brigavam entre si, tinham personalidades bem definidas e mais marcantes que os certinhos da DC. O sucesso foi imediato.

Depois do Quarteto, surgiram o Homem-Formiga, o Incrível Hulk, o Homem de Ferro, os X-Men, o Demolidor, o Doutor Estranho, o Pantera Negra, um novo supergrupo na forma dos Vingadores – no qual o ícone de Kirby e Simon, o Capitão América, foi ressuscitado. E vários outros, além, claro, do Homem-Aranha, maior personagem da Marvel e o com o qual Lee mais esteve associado. Foi Lee quem mudou o nome da editora de Timely para Marvel Comics, e ele respondia pessoalmente às cartas dos leitores, estabelecendo uma ligação com eles que não existia na DC. Esses personagens marcaram até as vidas dos não-leitores de HQs, por causa dos filmes que estrelaram e continuam estrelando.

Criações de Stan Lee dominam o mercado atualmente: como seria o cinema sem o Universo Marvel?

Os personagens fizeram tanto sucesso que o expansivo Lee virou a face da empresa, enquanto os caras que faziam o verdadeiro trabalho duro, como Kirby e Steve Ditko, co-criador do Aranha e do Doutor Estranho, recebiam mixarias pelos esforços. Lee instituiu o “método Marvel” para dar conta de escrever tantas HQs: ele dava aos artistas um resumo da história e os deixava livres para desenhar o que quisessem; depois só editava e adicionava os diálogos.

Isso levou ao longo dos anos a muitas polêmicas sobre a questão da verdadeira autoria do Universo Marvel: Lee foi importantíssimo, claro, mas as contribuições de Kirby, Ditko e dezenas de outros artistas não podem ser desprezadas. Lembre-se disso da próxima vez que ver Lee num filme Marvel: ele não criou tudo sozinho.

Mas essas polêmicas nunca morrerão e poderemos discuti-las pelo resto da vida. Hoje, o assunto é Lee: tão rico e famoso quanto qualquer escritor de best-sellers, ele aproveitou a vida. Promoveu a Marvel produzindo animações e as primeiras séries live-action como a do Hulk, que foi sucesso e, até hoje, é lembrada do público, e a do Homem-Aranha, que foi um fracasso e só durou uma temporada. Criou uma empresa de mídia, viu a Marvel declarar falência em meados dos anos 1990 e ser salva pelos contratos com a indústria de brinquedos e de Hollywood. Quando os X-Men e o Aranha passaram a ganhar as telas no início dos anos 2000, ele começou a aparecer nos filmes, estilo Alfred Hitchcock – tanto que, hoje em dia, até gente que nunca leu uma HQ dele sabe quem é o Stan Lee.

Excelsior!: Stan Lee nos deixa aos 95 anos

Tudo isso acompanhado pela sua expressão Excelsior!, que virou uma das suas marcas registradas. Mesmo assim, os últimos anos não foram nada Excelsior, apesar da diversão que as aparições dele nos filmes deixava transparecer. Joan faleceu em 2017, deixando Stan à mercê de problemas jurídicos causados por aproveitadores. Houve até boatos de maus-tratos envolvendo a própria filha do autor. A morte, enfim, chega em 2018, mesmo ano em que Steve Ditko também faleceu, deixando o Homem-Aranha órfão. Mas a obra fica.

Stan Lee entra para a história junto a uma porção bem pequena de outros nomes como Walt Disney, George Romero, George Lucas e mais um ou outro que mudaram as vidas de todos nós que curtimos fantasia, aventura e coisas além da mera realidade. O impacto dele, especialmente sobre as crianças, não pode ser quantificado – falando num nível bem pessoal, o Homem-Aranha foi, para mim, um modelo para a vida tão forte quanto meus pais, e falo isso sem pestanejar ou exagerar. Várias dessas histórias, e outras em diversas mídias, servem para nos ensinar a viver, é só prestar atenção um pouquinho além das cores e da ação.

Podemos até discutir o quanto de Lee estava em cada criação, em cada personagem, mas o fato é que há parte dele em todos.

Por isso mesmo, é melhor celebrar a figura e as criações de Lee do que lamentar a sua morte. O legado dele de certa forma fica resumido numa cena, a minha aparição favorita dele num filme, em Homem-Aranha 3 (2007):

Uma marca de um bom escritor, para mim, é transmitir pensamentos e ideias grandes e importantes de forma simples e breve. Então, será que Stan Lee acabou mesmo escrevendo um tipo de grande romance americano? Deixo a história julgar e, por hoje, digo apenas: Excelsior!