Existem poucas criações e personagens, na história da mídia dos quadrinhos, tão encantadores quanto Charlie Brown, sua turma e seu cachorro Snoopy. A tira Peanuts, criada na década de 1950 por Charles Schulz, rendeu uma série em desenho animado e filmes e continua a atrair fãs, mesmo já tendo passado quinze anos da morte de seu criador. E reter parte desse encantamento é a maior qualidade de Snoopy e Charlie Brown: Peanuts, O Filme, o novo longa animado baseado na criação de Schulz, agora produzido pela 20th Century Fox e pelo Blue Sky Studios, a mesma companhia responsável pela franquia A Era do Gelo.

O filme do diretor Steve Martino tem o roteiro escrito por Craig e Bryan Schulz, respectivamente filho e neto do criador de Peanuts. Percebe-se que a produção trata o seu material-fonte com extrema reverência, a ponto de o espectador que conheça a tira conseguir detectar um grande número de elementos dos quadrinhos no filme. Basicamente, está tudo na tela: o pobre Charlie Brown, que nunca consegue se dar bem soltando pipa ou arremessando uma bola de baseball; a sua paixão, a Garotinha Ruiva; a barraquinha de conselhos psiquiátricos de Lucy; as loucuras e a imaginação de Snoopy, que vê o aviãozinho vermelho como o seu inimigo Barão Vermelho; e o passarinho amarelo Woodstock, amigo de Snoopy e que também atua como seu crítico literário – ele é quem lê as historinhas que o inteligente cão datilografa na sua maquininha de escrever, no topo da sua casinha vermelha.

Também há referências aos desenhos animados da turma, como o fato dos adultos só falarem em “wahwahwah” e a voz de Snoopy e Woodstock no original ser feita pelo mesmo dublador da série antiga e dos seus filmes derivados, Bill Meléndez – ele já faleceu, mas suas antigas gravações foram reutilizadas nesta produção.

O roteiro criado pelos Schulzes segue duas linhas narrativas. Na primeira, acompanhamos os esforços de Charlie Brown para despertar o interesse da Garotinha Ruiva. E na segunda, vemos como Snoopy, inspirado pela paixão do seu dono, cria uma história cada vez mais maluca na qual ele resgata o seu amor, a cadelinha Fifi, numa batalha aérea contra o Barão VermelhoA primeira linha narrativa funciona, embora seja meio episódica – Charlie Brown se mete numa encrenca, depois em outra. Já a segunda não funciona, por nunca conseguir estabelecer relevância aos olhos do espectador. Ora, se tudo não passa de fantasia de Snoopy, por que nos importaríamos se ele salva Fifi ou não?

Além disso, o filme gasta um bom tempo de tela nessas sequências do aviador Snoopy – se fossem menos cenas do tipo, esse problema poderia ser minimizado. Do jeito que está, essas cenas passam a impressão de estarem no filme apenas pelas possibilidades de animação que elas proporcionam. E de fato, são cenas muito bonitas e engraçadinhas, nas quais vemos movimentos de câmera ágeis e gags humorísticas decorrentes da ação. Aliás, quanto à animação, é notável o esforço do filme em se aproximar do traço de Charles Schulz. Peanuts é animação por computador, mas também parece desenhado à mão em algumas cenas, tamanha é a aproximação do estilo do desenhista. O efeito de tridimensionalidade também é muito forte: em alguns momentos pensamos ser capazes de tocar na nuca do Charlie Brown.

O respeito à fonte é tanto que o filme até transpõe situações já conhecidas da tira de Peanuts literalmente das páginas para a tela em alguns momentos. Por exemplo, há uma cena pós-créditos que recria a engraçadinha piada envolvendo Lucy, Charlie Brown e a bola que ele deve chutar. Qualquer um que já tenha lido Peanuts ou visto os desenhos sabe como essa cena vai terminar. Mesmo assim, a parte mais importante do filme, sem dúvida, é a linha narrativa de Charlie. É aqui que o roteiro ousa um pouquinho mais e se mostra capaz de ir além de adaptar para a tela situações já conhecidas.

Um exemplo dessas mudanças são as cenas no meio do filme nas quais Charlie se torna popular e um ídolo na escola, e o desfecho, um pouco mais otimista do que geralmente se via nas historinhas de Schulz. Esses desenvolvimentos da trama trazem um ar de novidade e demonstram uma disposição de fazer algo novo com esses personagens que já conhecemos há mais de 60 anos. Aqui, o filme encontra um equilíbrio entre uma apresentação de Peanuts para uma nova geração e a reverência profunda ao espírito do criador dos personagens.

Esse equilíbrio é importante porque esta versão para o cinema de Snoopy e Charlie Brown resistiu à tentação de encher a sua história de cenas malucas e dubladores famosos para fazer graça, como vemos em várias animações. Os realizadores do projeto optaram por realmente fazer um filme dos Peanuts e conseguiram um resultado encantador, engraçadinho e, em alguns momentos, até tocante. Apesar de alguns problemas pontuais, felizmente este Peanuts é até um filme pequeno, sobre crianças pequenas e as pequenas coisas que aconteciam com um garoto de cabeça grande e coração maior ainda, do jeito que a tira de Schulz também era.