O instante em que Carol Aird (Cate Blanchett) e Therese Belivet (Rooney Mara) se encontram pela primeira vez em Carol é um daqueles famosos momentos de que todo mundo já ouviu falar, alguns juram que já o viveram e que o cinema já o criou e recriou tantas vezes, em níveis variados de eficiência e emoção – ou até breguice. Para Therese, particularmente, o encontro de seu olhar com o de Carol é o início de uma tortura que se expandirá aos poucos, trazendo consigo medo, confusão e uma promessa que pode não se cumprir. Afinal, como uma jovem vendedora, que não sabe nem o que pedir no almoço, como ela mesma diz, poderia se relacionar com a imponente Carol – e, especialmente, em plena década de 1950?

O encontro inesperado entre Carol e Therese é o mote para a jornada de autodescoberta e história de amor proibido que se segue no novo filme de Todd Haynes, baseado em um livro de 1952 de Patricia Highsmith – que, originalmente, teve de publicar a obra sob um pseudônimo por conta de seu tema controverso. Hoje, em pleno 2016, é triste que as coisas não tenham mudado tanto: só o fato de ter duas protagonistas mulheres envolvidas em um romance já faz de Carol automaticamente um filme “polêmico” para, até mesmo, parte da crítica, ou motivo de risinhos de alguns espectadores na sala de cinema.

Cate Blanchett em Carol

A tensão e a tragédia da vida real

Curiosamente, “polêmico” é o último adjetivo que poderia se aplicar a Carol. Desde o início do filme, Todd Haynes faz de seu longa uma obra recheada de delicadeza e simplicidade, o que nem de longe a torna menos contundente. Quando as duas mulheres se encontram, Carol está em vias de se divorciar do ex-marido Harge (Kyle Chandler) e luta pela guarda da filha Rindy, enquanto Therese trabalha numa loja de departamentos e foge das investidas e pedidos de casamento do namorado/amigo Richard (Jake Lacy). O pedido de injunção de Harge, que impede Carol de ver a filha, a faz embarcar numa viagem pelos EUA para tentar aguentar a ausência da pequena até o dia da audiência – e, para acompanhá-la, ela convida ninguém menos que Therese.

O que se segue nessa viagem poderia facilmente ser considerado um suspense, em stricto sensu: afinal, há uma tensão quase palpável no ar entre as duas protagonistas, um ar de flerte e atração e a iminência do toque que, ou não se concretiza, ou se limita a pequenos, mas significativos, gestos, como as mãos de uma no ombro da outra ou o ajeitar de um casaco para espantar o frio. Quando, enfim, o momento acontece, a câmera de Haynes passeia com intimidade pela cena, mais curta, mas tão intensa quanto a de Azul é a Cor Mais Quente, por exemplo.

Até lá, porém, o diretor explora não só a tensão entre as duas, mas as angústias pelas quais ambas passam; não à toa ele frequentemente explora planos em que as personagens são quase sufocadas pelo ambiente ao redor, sendo isoladas nos cantos do quadro, vistas por meio de frestas ou em imagens propositalmente difusas. Assim, Carol toma o tempo necessário para explorar o background de suas personagens, ao passo que também retrata com naturalidade a aproximação entre elas. Nesse ponto, aliás, cabe à roteirista Phyllis Nagy a decisão acertada de inserir o ponto de vista de Carol no filme, enquanto o livro assumidamente tomava apenas a perspectiva de Therese em relação à sua musa. Portanto, o longa muda com frequência de ponto de vista, geralmente tomando a câmera a partir de quem se encontra mais vulnerável no momento.

Rooney Mara em Carol

O amor nos tempos da opressão

Como se não bastasse o talento de Haynes, os aspectos técnicos que ficam a cargo de seus colaboradores só aumentam a riqueza de detalhes da narrativa: a fotografia granulada de Edward Lachman, parceiro habitual; o impecável design de produção comandado por Judy Becker, que explora todo o clima opressivo dos anos 50 para as duas mulheres, nas paletas de cores dessaturadas e frias dos quartos em que elas se hospedam durante a viagem; e o figurino da veterana Sandy Powell, que evoca constantemente a personalidade e o papel das duas na relação, estabelecendo principalmente o vermelho como uma cor forte associada a Carol, mulher já mais madura, e que passa aos poucos para as roupas de Therese, à medida que ela vivencia seu despertar sexual e seu amadurecimento profissional.

Mas todos esses aspectos só funcionam com eficiência porque encontram um par de protagonistas à altura. A dinâmica de aproximação e atração desenhada entre Carol e Therese é enriquecida pelas atuações de suas intérpretes. Cate Blanchett, como de praxe, faz de seus olhares e gestos suas maiores armas para encarnar a aparente segurança e determinação de Carol, ao mesmo tempo em que explora suas fraquezas – e suas tentativas de anular sua própria essência ao longo do filme só para poder ficar com a filha enriquecem ainda mais a trajetória da personagem e dão mais substância ao trabalho da atriz, culminando na bela sequência com Harge em uma audiência.

Enquanto isso, Rooney Mara serve como o contraponto perfeito, sem nunca se deixar apagar pela colega de cena, mas deixando claras a fragilidade e confusão de Therese, com um tom de voz mais suave e uma caracterização que se distancia de seus papéis anteriores, como a Lisbeth Salander de Os Homens Que Não Amavam as Mulheres, e chega até mesmo a lembrar a estrela Audrey Hepburn – e se alguém um dia quiser fazer uma cinebiografia da atriz, Mara seria a candidata perfeita. Os coadjuvantes da dupla principal não ficam atrás: Kyle Chandler sugere uma complexidade a mais do que um mero “vilão” e Sarah Paulson está super à vontade como a amiga, confidente e ex-amante de Carol.

Costurados na medida exata, todos esses elementos constituem a bela e delicada tessitura de Carol, como uma longa reminiscência melancólica de um amor proibido em tempos passados, mas com uma nota otimista no final, que lembra que, por mais que se tente, é impossível ao ser humano negar sua própria natureza, mesmo que a sociedade lhe exija isso para tentar eliminar o que considera como “imoralidades”. Pena que o que poderia ser apenas a crônica de um tempo passado às vezes ainda parece tão próxima da realidade atual.

P.S.: Com um olhar daqueles, quem não se apaixonaria por Cate Blanchett, não é mesmo?