A primeira preocupação da versão de “Suspiria” de Luca Guadagnino é fazer você entender que estamos na Berlim de 1977 e que há bruxas à solta. A segunda preocupação é mostrar um bordado com esta frase:

“Uma mãe é aquela que pode tomar o lugar de todos, mas, cujo lugar ninguém pode tomar”.

O original, um conto de fadas pagão dirigido pelo mestre do terror Dario Argento, usava livremente elementos mitológicos – mais especificamente, as graças, erínias e moiras – para conceber a ideia das Mães, uma tríade de vilãs sobrenaturais. Guadagnino e seu roteirista, David Kajganich, optam por uma abordagem gramatical desse conceito, com seu filme girando em torno da condição materna.

Não à toa que Argento não gostou da releitura, que troca o horror sanguinolento de seu longa pelo terror psicológico conduzido por uma série de ações de mães más. Claro, “Suspiria” está longe de ser único ou pioneiro nisso: “Psicose” faz o mesmo sem nunca nem mostrar a matriarca em questão e a relação da protagonista Susie Bannion (Dakota Johnson) e sua mãe no longa deve muito a “Carrie, a Estranha”. A maneira como estabelece a manipulação sentimental como fonte de poder dentro de um contexto feminino, no entanto, torna o filme muito pungente.

“Amor e manipulação dividem a mesma cama constantemente”, comenta um dos personagens do filme, e é possível ver nessa frase a própria estrutura que sustenta o convento das bruxas da Academia de Dança Helena Markos, onde a história do filme se passa. A instituição serve de fachada para que as feiticeiras deem presentes de grego a suas pupilas: em troca de seu afeto, atenção e habilidades, as alunas ficam suscetíveis a dar-lhes tudo, inclusive seus corpos e almas.

Um comentário pertinente sobre essa conduta vem da escritora Gillian Flynn (“Garota Exemplar“) que, em entrevista ao jornal The Guardian, se defendeu das acusações de misoginia em sua obra da seguinte maneira: “Algo que me frustra muito é essa ideia de que mulheres são naturalmente boas e acolhedoras. […] Há uma grande resistência de que mulheres possam ser pragmaticamente más e egoístas”. É na exploração dessa possibilidade, bem como a do conflito geracional da Alemanha pós-guerras, que está o coração do novo “Suspiria”.

Em 1977, o peso das ações da geração passada está levando os jovens alemães a se rebelarem e se estabelecerem como forças, como mostram os episódios terroristas que servem como pano de fundo para a história. No entanto, essas forças não são suficientes para romper a hierarquia e, da mesma forma como esses movimentos são neutralizados fora da academia, lá dentro as dançarinas se vêem impotente diante do poderio antigo das bruxas.

O poder delas advém da sua habilidade de reunir seguidoras e, como mães, elas as mantêm por perto. Uma vez aceitas na instituição, as alunas passam a morar lá e, na frente delas, as mestras assumem o papel incentivador de matriarcas.

No entanto, a relação entre elas é predatória, pois, a portas fechadas, as professoras planejam o uso e o abuso físico e mental de suas pupilas, tudo visando os seus próprios interesses. Quando algo ameaça essa ordem, as bailarinas são violentamente atacadas e incapacitadas – tornando o filme uma grande alegoria sobre o medo da repreensão materna.

Para Susie, esse medo já vem da sua vida antes de chegar a Berlim. Criada no seio de uma família ultra religiosa no meio dos campos isolados de Ohio, a menina cresceu com seus interesses sendo constantemente tolhidos pela mãe, que projetava nela uma culpa do passado. Quando o despertar sexual natural da adolescência chega, os castigos se tornam ainda mais violentos até que, eventualmente, ela sai de casa em condições não mostradas ao espectador. Essa tônica se repete dentro da maternidade postiça dentro da academia.

Quando os poderes de dança de Susie começam a estimulá-la sexualmente, nota-se uma clara interferência na sua relação mãe-filha com Madame Blanc (Tilda Swinton), que se revolta como uma amante relegada. Apesar disso, por conta de seu vínculo com a professora e do favoritismo do qual goza, Susie é protegida e beneficiada mesmo ao custo de outras.

Para que ela possa incorporar perfeitamente os movimentos de uma performance, uma bailarina, é mutilada e outra perde a habilidade de saltar. O egoísmo com o qual Blanc coordena essas ações expõe a frieza de seu caráter, ainda que ele seja contrabalanceado com o amor real que sente pela nova aluna – amor esse que se prova no final do longa, com graves consequências para si.

A própria habilidade de curar e ferir simultaneamente, a seu bel prazer, caracteriza a própria noção ocidental de bruxa – uma mulher que renega o papel que lhe é imposto socialmente em prol do seu empoderamento e o atendimento dos seus desejos. A não-conformidade das feiticeiras de “Suspiria” aparece na sua resistência em manter um centro artístico mesmo durante o período nazista, quando, segundo uma das alunas, “Hitler queria as mulheres de bocas fechadas e úteros abertos”.

Nesse contexto, bruxas se mostram a essência do arquétipo da mãe má, levando caos – ou, para usar a mitologia do longa, escuridão, lágrimas e suspiros – aonde quer que estejam. Muitas de suas eventuais vítimas sabem que algo está errado muito antes de algum incidente acontecer com elas, mas por conta do magnetismo exercido pelas figuras maternas, elas não fogem. É este o poder que o “Suspiria” de Guadagnino explora para fins de terror – o medo inato à consciência de que quem lhe deu a vida também pode tirá-la de você.