Aos cinéfilos de Manaus que não tiverem ido ao Casarão para assistir a Temporada, o novo filme de André Novais Oliveira (de Ela Volta na Quinta), só posso dizer que vocês perderam.

Deixaram escapar um novo triunfo do cinema brasileiro (que vive uma boa fase quase em segredo, como pôde comprovar quem viu Benzinho, As Boas Maneiras ou O Animal Cordial, todos solidamente longe do radar do público de, digamos, Minha Vida em Marte), uma obra que realiza o que muitos filmes tentam – descobrir, para o espectador, e estampar na tela a beleza de uma vida considerada banal –, mas só muito raramente conseguem.

Juliana (a extraordinária Grace Passô, de Praça Paris) é a dona dessa vida – uma mulher humilde, que vem de um município do interior de Minas Gerais para trabalhar em outro, não muito maior (Contagem), como agente de saúde, após ser chamada por um concurso público. O que se segue é tão ordinário quanto: há os percalços de se começar a vida num lugar alheio – o estranhamento da nova casa, a lenta reconstrução do conforto e da rotina; há um casamento, já sem viço, com um marido relutante, que ficou de vir tão logo Juliana se estabeleça; há as novas amizades, homens e mulheres que vivem os seus próprios dramas comezinhos; e há um passeio, guiado pela câmera alerta de Novais, por uma Contagem em suas faces e arestas menos atraentes – as comunidades pobres, os bairros periféricos.

E, no entanto, de tudo isso, o diretor e o elenco extraem o que é possível haver de beleza e poesia – e quem assiste e se permite arrebatar sem reservas pode descobrir a enorme medida delas também. Há uma unidade de propósitos aqui – a perícia de Oliveira (também autor do roteiro) para os diálogos, que conseguem soar naturais e fazer avançar o enredo ao mesmo tempo; o trabalho afinado e sem alarde do elenco; e a segurança da direção sobre o ritmo e o tom das cenas. Tudo isso resulta em criações tão irretocáveis quanto o diálogo entre Juliana e sua prima, quase no meio do filme, em que aquela descreve o episódio que fez estremecer seu casamento. Ou outro, já no final, em que Juliana, mais uma vez, relembra um episódio intrigante de sua adolescência. São cenas que, sinceramente, me remeteram a momentos similares nos grandes filmes de Ingmar Bergman.

Há boas sacadas em mais áreas do filme. Repare as mudanças quase imperceptíveis na fotografia, que acompanham a jornada íntima de Juliana da penumbra para a luz intensa. Ou o uso inteligente da música, que comenta e amplifica imagens e situações de forma sutil, e às vezes ambígua.

Mas, principalmente, note os fantásticos instintos de Passô: a risada abrupta e nervosa quando ela é convidada por um dos novos amigos a ir jogar videogame na casa dele; a perplexidade crescente, mas silenciosa, nos vários contatos telefônicos com o marido; a maneira como ela modula o olhar e as expressões do rosto enquanto é convencida por um cabeleireiro a topar dar uma chance àquele salão. É um trabalho brilhante, e mais uma confirmação de que Grace – uma atriz já há muito respeitada no meio teatral – precisa ser descoberta e celebrada também na telona.

Há, ainda, aquelas qualidades que marcam este filme como parte de um processo de amadurecimento temático do cinema brasileiro, afinado com as mudanças da sociedade e do país: eis uma obra que dá o protagonismo a uma mulher, negra, sem qualquer concessão a padrões óbvios de beleza, e que escolhe dar voz, complexidade e lirismo a personagens que, se não ignorados, se prestam a virar joguetes sociológicos, ou a acusar a má consciência das elites, na tradição mais típica do cinema brasileiro. Mas que, pela sutileza – eis um filme que quer principalmente contar uma história humana, verdadeira, sem militância além do que as suas imagens comunicam – e pelo puro encanto do conjunto, é tão universal e sublime quanto outros grandes filmes sobre jornadas de autodescoberta: Azul É a Cor Mais Quente, Alice Não Mora Mais Aqui, Azul (da Trilogia das Cores de Kieslowski) e, claro, Morangos Silvestres. Temporada pode facilmente se juntar a essa companhia.