Se tem uma coisa que os britânicos sabem fazer muito bem – talvez melhor que qualquer outro povo no mundo – é criar dramas históricos capazes de seduzir o espectador apenas com a força da arte, ou seja, com grandes desempenhos dos atores e roteiros perfeitamente calibrados. O artesanato das produções britânicas é quase sempre muito bom de ver, algo como um relógio extremamente bem montado e preciso, e no qual a soma das partes individuais se une num todo envolvente e coeso. E isso se aplica tanto a filmes de cinema quanto a produções para a televisão.

The Crown, produção da Netflix em parceira com a Sony Television, é mais um relógio britânico preciso, bonito e impressionante. A série é sobre a família real britânica, especificamente sobre o começo do reinado de Elizabeth II – assunto que nunca deixa de fascinar os súditos da rainha e pessoas de outras partes do mundo também – e retoma temas que já vimos antes em filmes e seriados. Em The Crown, o drama vem da eterna luta entre a rigidez do dever e do cargo, e a fluidez e imprevisibilidade dos sentimentos humanos. Não há nada de realmente novo aqui. Mas a série é tão bem produzida, os atores estão tão fantásticos em seus papéis, os roteiros são tão bem escritos e os episódios, tão envolventes, que a série seduz o espectador.

Toda essa carpintaria começa com a escrita, e The Crown é produto da mente de um escritor meio que especialista em família real: Peter Morgan, criador, produtor e roteirista de todos os episódios desta temporada da série, foi indicado ao Oscar pelo roteiro de A Rainha (2006). Ele também escreveu outros ótimos filmes como O Último Rei da Escócia (2006) e Frost/Nixon (2008). Junto com Morgan, também está em The Crown o diretor Stephen Daldry, de Billy Elliot (2000) e As Horas (2002) – Daldry é mais um nome que se reinventa na TV após ver sua carreira na tela grande vacilar com uma sequencia de filmes fracos.

Morgan e Daldry mantém o foco preciso no funcionamento da monarquia nos dois primeiros episódios. A série se inicia no final dos anos 1940, com o casamento de Elizabeth (vivida por Claire Foy) com Phillip (Matt Smith). Nesse começo, Morgan e Daldry primeiro descrevem o mundo onde a protagonista vive, e a mostram quase como uma personagem de pano de fundo. Ela não parece ser alguém pronta para reinar, e de fato esta primeira temporada apresenta um toque de “história de origem”, a dela.

Afinal, nos primeiros episódios, o foco parece estar mais sobre o rei George VI, interpretado por Jared Harris – e sim, é o mesmo rei que vimos lutar contra a gagueira no oscarizado O Discurso do Rei (2010). O mundo britânico ainda é regido pelo impacto do pós Guerra, e o primeiro ministro Winston Churchill (John Lithgow), um dos personagens mais importantes do século XX, ainda está no governo. Mas o mundo está prestes a mudar, não apenas por causa do casamento da princesa com um homem não exatamente convencional, mas também porque o rei George começa a sofrer com o câncer de pulmão que lhe tiraria a vida de forma até prematura, levando Elizabeth ao trono.

Mas essa é a história oficial, a que todos nós conhecemos, ou podemos conhecer com uma consulta à Wikipedia. Morgan está mais interessado em pintar o retrato íntimo daquelas pessoas. Não à toa, uma das cenas mais especiais do primeiro episódio é quando George, que já sabe que algo está errado com ele, chama Elizabeth para o seu escritório e admite que não tem nada em particular para conversar com ela. Dentro daquela estrutura tão formal, o vemos simplesmente desejoso da companhia da filha, algo que ele não terá por muito mais tempo. É uma bela cena, extremamente sutil, e atuada à perfeição por Harris e Foy.

Aliás, a carpintaria impressionante de The Crown se estende em grande parte aos atores. Harris tem uma performance sensível que o torna marcante mesmo aparecendo em poucos episódios, enquanto Smith usa sua presença de cena estranha – ele foi um Doctor Who, afinal de contas! – para tornar seu Phillip quase um alienígena, um sujeito sempre à parte, até mesmo dentro do seu casamento. Outro desempenho de destaque é o de Vanessa Kirby como a princesa Margaret, irmã da rainha: de personalidade e emoções fortes, a personagem gera conflitos em quase todas as suas aparições, e Kirby aproveita as oportunidades para injetar um pouco de emoção imprevisível nos episódios.

O que leva aos desempenhos de Foy e Lithgow. Foy é daquelas atrizes capazes de dizer muito apenas com os olhos expressivos, o rosto impassível e a voz. É um desempenho extremamente estudado e sutil e que, como a série, seduz a quem assiste. E o americano Lithgow é, a rigor, uma escolha interessante para o papel de Churchill, e não apenas porque o ator é o único “não britânico” do elenco. Mais conhecido pelos seus papéis cômicos como o da série 3rd Rock From the Sun, ou de psicopata nos filmes do seu amigo Brian De Palma – ele também foi um psicopata memorável em Dexter – Lithgow nunca foi conhecido como um intérprete comedido, e sempre expôs uma energia maníaca em seus trabalhos. Em The Crown, ele é sutil e poderoso, dominando quase todas as cenas em que é visto e realmente desaparecendo no papel. É o tipo de trabalho “pensado fora da caixa”, e feito para coroar, com o perdão do trocadilho, uma carreira.

Ao longo dos episódios vemos aquela moça jovem e comedida – talvez até demais, mesmo para os padrões ingleses – se tornar uma figura cada vez mais confiante e forte, embora ao custo de perder um pouco da sua alma. Não à toa, quando ela assume como rainha, Elizabeth é recebida pela sua mãe vestida de preto – uma imagem fantasmagórica e poderosa mostrada por Daldry – e recebe a notícia de que sua vida, de certa forma, acabou. Vemos Elizabeth entrando em conflito com seu marido, com seus ministros e seus familiares, e lutando para fazer valer a sua vontade. Também vemos outros personagens, como Churchill e Phillip, tentando encontrar lugar num mundo em mudança, e a coroação de Elizabeth serviu como marco de novos tempos. Não à toa, um subtexto sutil da temporada é a maneira como os homens reagem a uma mulher em posição de poder. Na visão de Morgan e Daldry, a história de empoderamento de Elizabeth é uma que permanece importante e atual hoje, tendo em vista a luta feminista que vem ganhando cada vez mais força.

Às vezes Elizabeth conseguiu ser poderosa e feminina. Mas, como produto do meio em que viveu, às vezes ela só conseguiu ser poderosa. Vê-la lidar com o peso da coroa é, além de dramático, muito envolvente. The Crown, ao retratar isso, se torna muito boa televisão, até viciante e difícil de largar… Como muitas vezes só os britânicos sabem fazer.