Kirby Dick é um documentarista que não tem medo de colocar todos os dedos em todas as feridas possíveis da cultura norte-americana. Se Michael Moore se tornou famoso ao apostar em polêmicos debates políticos na terra do Tio Sam, Dick voltou-se repetidas vezes à questões referentes a visão da sexualidade e suas distorções na nação mais poderosa do mundo.

Essa é a pegada de “The Hunting Ground” documentário sobre o qual ouvimos falar com mais proeminência por essas bandas graças à sua canção original, que concorreu ao Oscar e contou com uma interpretação emocionante de Lady Gaga na cerimônia deste ano. O filme fala sobre uma verdadeira epidemia de casos de estupro e assédio sexual nas universidades americanas a partir de extensa pesquisa de campo, a partir da qual dados alarmantes são expostos ao expectador. Temos no filme a visão das vítimas e das instituições sobre o assunto, mas frisa-se principalmente como a cultura de estupro é quase que normalizada nesse universo, varrida para debaixo do tapete muitas vezes para atender a interesses mercadológicos das grandes universidades.

Dick, que já se voltou à questão do estupro (no contexto das instituições militares) com o indicado ao Oscar “The invisible war” (2012), retoma a abordagem com sua pegada expositiva. Dada a alarmante temática, não há espaço para muito simbolismo nas escolhas criativas do diretor, o que até ajuda a manter a sobriedade do tratamento de um tema que, em mãos mais descuidadas, apelaria ao sensacionalismo com facilidade.

Se e normal, não é errado?

Dessa maneira, as asserções de Kirby Dick sobre a questão do estupro nas universidades são claras: as extensas pesquisas corroboram com o que as vítimas relatam e vice-versa, reforçando a mensagem de que jovens mulheres com ambições acadêmicas e profissionais são direcionadas para instituições de renome que, tradicionalmente, são privadas nos EUA, mas não tem ideia de como a segurança é negligenciada no que diz respeito a um crime que acomete, em grande parte, pessoas do sexo feminino. Pior ainda, as instituições colocam o próprio nome acima do bem estar dessas mulheres ao seguir procedimentos que propositadamente evitarão que os casos de estupro sejam investigados e os culpados, punidos, já que isso atrairia publicidade negativa para a universidade. Como se já não fosse ruim o suficiente, quando o estuprador é um membro da própria comunidade acadêmica, ele tende a ser protegido e raramente é penalizado.

Em “The hunting ground”, o ato do estupro é dissecado em sua significância social, e ao redor disso, as práticas próprias dos campus norte-americanos se ordenam de forma a normalizar o crime. Dessa maneira, são várias as mulheres sobreviventes que relatam como as tradicionais acolhidas a calouros e as festas de fraternidades (grupos institucionalmente aceitos dentro das universidades e que contas, inclusive, com espaços próprios dentro e fora dos campi) são antros permissivos de várias formas de assédio e de sexo sem consentimento. Por pressão social, muitas mulheres acabam participando das festas, bebendo além da conta e forçadas ao ato sexual. E o que acontece aos estupradores? Basicamente, nada.

O sentimento de culpa e vergonha socialmente impostos às vítimas de estupro são também foco do documentário de Dick. Ao contrário de considerar as sobreviventes vítimas de um crime, as apurações por parte dos campi nos EUA reproduzem toda forma de assédio moral às alunas prejudicadas: buscam relativizar o estupro, frisam em seus questionamentos se a aluna não “deu a entender” que queria manter uma relação sexual etc. “The hunting ground” é categórico ao mostrar como essa abordagem é padrão nas universidades, não importa o quão violento e claro foi o caso de estupro relatado. Com isso, quem é mais penalizado é a vítima, e não o agressor.

Da mesma maneira que Dick abre mão de simbolismos e meias palavras para trazer sua visão do assunto e dar voz às estudantes e ex-estudantes universitárias, ele escancara as consequências disso tudo. O documentário traz então informações diversas sobre o índice de alunas que tem o rendimento prejudicado após ser duplamente vitimadas (pelo estuprador e, posteriormente, pela instituição), quantas acabam abandonando a faculdade e, nos casos mais extremos, cometendo suicídio. Os relatos são sinceros, alguns extremamente difíceis de acompanhar, uma vez que as jovens entrevistadas possuem perfis tão ricos e variados, o que dá aquela sensação de que poderia ser eu, você ou qualquer pessoa que conheçamos, e isso por si só já dá força a um documentário que, em termos de uso da linguagem fílmica, passa longe de expressar alguma ousadia.

Pela experiência do documentarista com outros temas relativos ao tratamento da sexualidade pela cultura norte-americana, os pontos de vista defendidos pelo documentário não perpassam uma posição neutra. Kirby Dick se coloca ao lado das vítimas e pelas vítimas, fortalecendo cada relato com dados que cobrem toda a extensão do país e mostrando que o termo “epidemia” está longe de ser um exagero para descrever os casos de estupro, mesmo nas mais renomadas universidades como Harvard, para citar apenas uma. Nada mais normal após sua experiência de direção não apenas do “The invisible war” (2012), mas também de “Twist of Faith” (2004), que acompanha um rapaz vítima de abuso sexual cometido por um padre.

O gosto de Dick por usar uma linguagem direta que remete aos moldes do documentário expositivo e televisivo é seguido a risca em “The Hunting ground”. Isso, juntamente com a obsessão do diretor em tornar clara as hipocrisias da sociedade americana no trato da sexualidade, emparelha o longa com o essencial “Outrage” (2009) e o interessantíssimo “This film is not yet rated” (2006), que abordam, respectivamente, como vários parlamentares americanos contra os direitos LGBTT são homossexuais “no armário” que tentam galgar degraus na política, enquanto que o último aborda o falso pudor nas classificações indicativas dos filmes gringos, num processo no qual a violência gráfica é ovacionada, mas o ato sexual, mesmo consentido pelas partes envolvidas, pode diminuir significativamente a parcela de público para o qual a obra pode ser exibida.

Capitalismo selvagem

Amenizado o choque do contato com a superfície temática do documentário a partir dos relatos dos casos de estupro, um dos pontos que mais chama a atenção é a relação mercadológica que permeia o tratamento dado às vítimas. “The hunting ground” ataca a jugular das grandes instituições universitárias nos EUA que, ao contrário do Brasil, são privadas e dependem diretamente de estratégias publicitárias para manter seu status numa sociedade na qual é comum uma família de classe média economizar dinheiro por quase 20 anos para poder arcar com as despesas do ensino superior dos filhos. Varrer discretamente para debaixo do tapete os chocantes relatos das alunas entrevistadas ao longo do documentário é uma estratégia clara dessas universidades, assim como constranger, de forma velada, iniciativas de alunas que se unem em grupos de apoio e movimentos de auxílio legal e psicológico.

Na contramão disso tudo, temos ainda um último item mais caro às universidades que o bem estar dessas mulheres: os times esportivos de cada instituição. Jogos universitários de esportes como basquete e futebol americano são um filão lucrativo nesse contexto que é altamente permissivo para com os alunos atletas. Não por acaso, um segmento do documentário se dedica a abordar casos de estupro cometidos justamente por esses estudantes, num processo no qual a vítima/sobrevivente não apenas é desamparada pela instituição, preocupada em ganhar dinheiro com os jogos a partir do desempenho de seus “craques”, mas hostilizada pelos demais estudantes/torcedores, que não querem que os jogadores sejam afastados para investigação ou punição no meio da temporada de competições.

Ao explicitar tantos absurdos e lançar o olhar de estranheza a situações que, por mais violentas e erradas, foram aos poucos sendo normalizadas, que “The hunting ground” se coloca como um documentário imperdível para cinéfilos ou não, a exemplo de “India’s daughter” (2015). Ainda que o produto final resulte num filme simples, o empenho em tornar ricas as informações e o choque dos relatos serve como importante alerta, alavancando a carreira de um longa que é muito mais que “um filme com a música da Lady Gaga”.