O último festival Olhar do Norte, em agosto, trouxe alguma justiça para um dos filmes amazonenses mais interessantes dos últimos anos: A Estratégia da Fome, do cineasta Walter Fernandes Jr.

Alguma justiça porque a única avaliação artística da obra até aqui havia sido a crítica que Marcos Faria publicou no Cine SET pouco depois da estreia do filme, no ano passado. Seu relato, curto e decididamente desapontado com a obra, me fez pensar se não seria melhor aproveitar o tempo da sessão para ir até o Jápeto Bar, ali perto, e desfrutar uma sublime tábua de linguiça e pão de alho (coisa que fiz logo depois, com a satisfação especial de emendar grandes sabores para as sinapses e as papilas). 

A verdade é que Estratégia valeu cada minuto de sua razoável duração (um pouco menos de 40 minutos), com sua combinação a um só tempo irreverente e angustiada, moleque e sábia de elementos. Certamente, sua proposta mais radical não vai agradar a todos – e nem deveria, claro –, mas pretendo demonstrar, aqui, que também é possível ser arrebatado por este espécime singular na filmografia local. 

ANTES “GRAVES E AGUDOS”

Já tinha Graves e Agudos em Construção (2021), filme anterior de Walter e sua primeira produção amazonense, como um sopro renovador para o cinema do estado. Lá estava um curta que distribuía gloriosas bananas em todos os setores: à lógica narrativa, à coerência tonal, ao comedimento das atuações, e a outras quimeras mais alusivas, como a pretensão de realismo e o bom-mocismo político. Acenos ao Cinema Novo e ao cinema marginal produzido no Brasil entre as décadas de 1960 e 1970 estão em todo lugar, não para esbanjar o domínio histórico do diretor, mas porque, para ele, o desafio às convenções e a busca pelo arejamento narrativo do cinema nacional continuam tão prementes hoje quanto naquela época. 

O mais importante, porém, é que o trabalho do realizador carioca parece ter dado um salto, em ambição, propósito e vigor estético, a partir daquela pequena joia. Graves é uma coleção de esquetes aparentemente soltas, mas unidas por uma cola peculiar: o sentimento de catarse. Cada episódio conduz rapidamente a um clímax, que pode ser de tristeza, ira, prazer ou alegria, e essa urgência vital, somada à deliciosa estranheza e ao provocativo nonsense das situações, teve mais a dizer para mim do que muitos dos filmes amazonenses da safra recente. 

DRAMATURGIA DO ABSURDO

Todas essas qualidades – a urgência, a estranheza, a provocação, a economia narrativa, o ostensivo desprezo aos padrões estabelecidos – voltam redobradas em A Estratégia da Fome, e não só por causa do tempo de duração (por sinal, algo que, em si, já é um fator de subversão – quem faz médias-metragens hoje em dia? Que eventos de cinema abrem espaço para médias-metragens?). Mas o tom mudou: seus protagonistas agora são dois (Rhuann Gabriel, ator mirim que já havia sido decisivo para a qualidade de Graves; e Isabela Catão, a intérprete mais atribulada e recompensadora do cinema amazonense atual), e os pequenos êxtases que ajudavam a aliviar a existência dos personagens no último filme estão agora irremediavelmente fora de alcance.

Ao cantar os “cartas-fora” da sociedade, como um personagem define na sequência final, Walter deixa entrever um olhar compassivo sobre o desamparo. Sua dramaturgia do absurdo é feita a partir de situações e elementos corriqueiros da realidade brasileira e amazonense: o lixão a céu aberto cercado de árvores amazônicas; o parque onde as crianças em movimento mecânico assistem indiferentes a uma cena (paródica) de violência; a casa burguesa com uma atmosfera difusa de decadência; o terreno baldio em que famintos acossam uma senhora distribuindo marmitas. Material que também poderia fazer parte de um filme de Glauber ou Sganzerla, a provar que o Brasil realmente andou repetindo de ano. 

Claro que nada disso vem na forma de afirmações explícitas, ou como tentativa de articular um posicionamento do diretor sobre a situação brasileira: em Estratégia, só as noções pré-concebidas são sistematicamente ultrajadas. Eis um filme em que cada cena parece ter sido pensada de forma a surpreender, intrigar ou mesmo confundir o espectador: do caminhoneiro que responde “I am the walrus” (o rock clássico e seus ícones são fixações do diretor) ao videoclipe-dentro-do-filme estrelando a grande banda Platinados, temos toda sorte de provocações e soluções inventivas para balançar o coreto da normalidade cinematográfica. 

Há, também, o trabalho mais complexo e multifacetado da atriz Isabela Catão até aqui. Se os seus filmes anteriores eram quase invariavelmente voltados ao drama (como, aliás, acontece com quase toda a produção do Amazonas), as situações desvairadas criadas pelo roteiro de Walter são abraçadas com ferocidade e abandono pela intérprete, produzindo descargas elétricas memoráveis em cena. 

Até na música, Estratégia se dá bem: as peças que abrem e fecham o filme – a Suíte Lírica do compositor clássico austríaco Alban Berg e o diamante do pop sessentista “Goin’ Out of My Head”, de Little Anthony & The Imperials, ficaram rondando a memória por dias após a exibição, como é raro acontecer em qualquer filme. 

Portanto, fica aqui a única solução possível para o impasse crítico fomentado a partir da publicação deste texto: não ignore A Estratégia da Fome – assista na primeira oportunidade, e descubra se ele lhe soa como um trabalho importante e inovador ou um pastiche nostálgico do cinema brasileiro em sua época mais fecunda. E depois me conte. De preferência, com a possibilidade de cerveja gelada e petiscos caprichados para acompanhar a polêmica.