A maioria das histórias de ficção científica, incluindo aí alguns contos literários e filmes, evoca um futuro qualquer onde o trabalho do homem esteja mediado por robôs. Isto é, aquele trabalho de rotina, muito deles do cotidiano doméstico, será desempenhado por “máquinas pensantes”, tornando-se elas um “parceiro” do dia-a-dia da vida. Dessa forma, o homem poderá usufruir mais tempo livre e assim exercitar sua felicidade.

Contudo, cada vez mais, isto parece ser obra de ficção científica mesmo. Percebe-se que a construção das ditas máquinas de “facilitação da vida”, notadamente os computadores e suas variações, têm aprisionado os homens, transformando-os em máquinas. Se observarmos o comportamento de pessoas que trabalham com telemarketing, pesquisas de opinião e no atendimento ao serviço público – privado ou estatal –, temos alguns exemplos “modernos” dessa transformação e comprovação. Reagimos até na crença que estamos falando com máquinas e não seres humanos – insensíveis, frias, mecanicamente treinadas para respostas repetitivas.

Assim é a abordagem de Eu, Daniel Blake, filme do veterano Ken Loach. Talvez não seja essa sua principal intenção, mas desde o início do filme, já nos primeiros segundos, ainda sem qualquer imagem, somos submetidos ao clima kafkiano que impera boa parte do serviço público mundial sob a égide do neoliberalismo. A partir daí, acompanhamos as desventuras de um carpinteiro com mais de 60 anos que, tendo sofrido infarto e impossibilitado de trabalhar por determinação médica, corre atrás de seu benefício de auxílio-desemprego pelos espaços devidos do Estado. Sim, essa é a “via crucis” de Daniel Blake, mas poderia ser de Raimundo, Helena, Chico ou Maria, qualquer trabalhador que busque o amparo do Governo, quando dele necessitar após anos de contribuição previdenciária.

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Mas a situação de Daniel nos parece mais surpreendente, pois se situa num país dito ultra desenvolvido e que alardeava relações trabalhistas mais humanitárias. Não é isto que mostra o filme de Loach, vencedor da Palma de Ouro em Cannes 2016. O que ele nos oferece é a real situação em que vivem os trabalhadores precarizados britânicos diante de um Estado burocratizado, insensível e assassino. Por extensão, temos essa mesma perspectiva nos caminhos que a política norte-americana e brasileira parece reservar aos trabalhadores com as medidas absurdas de Trump e a contrarreforma previdenciária de Temer, respectivamente.

O personagem Daniel Blake é um cidadão que se mostra impotente frente a um Estado que falha em garantir sua dignidade quando ele mais precisa. Mais que isso, assiste inconformado à forma como os governos tratam, em suas baias, cartilhas decoradas e atendentes eletrônicos, cidadãos honestos como ele. E tudo que ele quer – como todos os trabalhadores – é apenas uma renda digna de sobrevida para quem muito labutou, mas a realidade que impera é a de uma sociedade autoritária que não integra nem deixa integrar.

 Não há como não se sensibilizar com a história de Blake, mas muito poderão ver nela certo tom melodramático, um conjunto de situações exageradas forçadas por Loach para acentuar o perfil desumanizador do capitalismo. Na verdade, exagero há de quem assim pensa, pois acredita que no sistema capitalista há um perfil humanista. Aí está Trump para reforçar essa lógica… O que torna universal a história criada por Loach é a sua dimensão política, como universal é a condição do ser humano. Não há como dividir simplesmente os homens em bons e maus, em corretos e incorretos, em justos e injustos, como se fossem marcas genéticas que perdurarão por toda a vida. E assim teríamos os heróis e os vilões configurados. Não, o que há, no capitalismo, são os homens que têm posse e dinheiro e os que não têm, os pobres. E o mundo segue a vida com essa ótica discriminatória, hoje e no futuro. Isto se não lutarmos por sua modificação, transformando-o num ambiente onde os valores do ser humano sejam efetivamente respeitados e garantidos. Assim é o pensamento de Loach, provavelmente o mais antigo diretor de cinema em atividade de contorno (e convicções) daquilo que costumeiramente chamamos de esquerda. Toda sua trajetória de vida constitui-se, nas várias frentes de luta, um consistente combate ao pensamento (e ato) discriminatório, preconceituoso e fascista do sistema capitalista. E, claro, daqueles que o defendem.

Mesmo Eu, Daniel Blake sendo um filme com uma estrutura narrativa um tanto quanto tradicional, sem arroubos narrativos de plots de reviravolta, com uma fotografia e montagem convencional, o que o valoriza está na proposta de chamar a atenção para a dimensão humana e política que estamos perdendo no mundo sofisticado e regido cada vez mais por frias “máquinas humanas”. Tanto no comando do poder como nos pequenos agrupamentos sociais. É imperiosa uma mudança social.

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Um filme poderoso, emotivo e obrigatório.