Entender o trabalho dos diretores contemporâneos que admiramos é também olhar para trás na história do cinema. É assim que podemos nos aprofundar no entendimento de seus temas tanto no plano da escolha e tratamento do roteiro como em nível de uso das potencialidades da linguagem. Nesse sentido, conhecer Yasuzo Masumura é também conhecer algo de Quentin Tarantino e Steven Spielberg. No Cult Movies dessa semana, o filme selecionado é “Manji” (1964), uma pequena pérola desse diretor da Nouvelle Vague japonesa.

A proposta do cinema de Masumura nos anos 1960 era não se atrelar à vanguarda cinematográfica proeminente até então, o neorrealismo italiano. Seguindo a proposta já ativa na Nouvelle Vague francesa e mesmo no Cinema Novo brasileiro, as experimentações com a linguagem cinematográfica serviram também a outro propósito: retratar paixões humanas. Nesse sentido, “Manji” pode ser considerado um grande êxito: assistir a esse filme é como vivenciar os longos segundos que um carrinho leva para subir ao topo da montanha-russa, para depois descer velozmente enquanto você não pode fazer nada além de torcer para tudo terminar bem.

Não que se trate de um filme de terror. A agonia que “Manji” desperta está em como ele apela ao plano psicológico do espectador. A trama, em verdade, nada tem de tão aterradora à primeira vista. Ela acompanha a protagonista, Sonoko (Kyoko Kishida), casada com Kotaro (Eiji Fukanoshi), com quem tem uma vida sem surpresas. Sonoko passa os dias frequentando aulas de arte, e ali ela conhece outra aluna, Mitsuko (Ayako Wakao). Ela vê em Mitsuko uma grande beleza, a ponto de desenhá-la como uma deusa budista. A partir daí, Sonoko desenvolve uma verdadeira obsessão pela moça, sendo de certa forma incentivada por ela. O relacionamento, porém, tem um caráter doentio e se constrói num tenso jogo psicológico que se agrava a todo instante, piorando ainda mais a partir da chegada do noivo de Mitsuko.

O azul não é a cor mais quente

Embora a repressão de uma mulher com desejos homossexuais permeie a trama de “Manji” inevitavelmente, a abordagem escolhida por Masumura está voltada a como a paixão da protagonista se desenrola na forma de obsessão. Aí é possível retornar à metáfora da montanha-russa com mais propriedade: Sonoko desce às profundezas desse desejo velozmente, numa total entrega, sem qualquer vontade de ativar algum mecanismo de defesa emocional. Ela não percebe a personalidade manipuladora de Mitsuko, cega por sua baixa auto-estima perante a moça (pelo menos é o que parece a princípio…). Sendo assim, não se engane pelo tom melodramático que a história parece construir de início: para Masumura, trata-se de um pesadelo vertiginoso e frenético.

A atuação de Kyoko Kishida capta o tormento interno da protagonista de forma arrebatadora. Com apenas um olhar, a intensidade do contraste entre o desejo doentio e a polidez típica do trato japonês vêm à tona de forma arrepiante. Ela reconta a própria história trágica em flashback, mas por pouco não se gera no espectador a sensação de que a personagem pode não ter sobrevivido ao que passou.

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Em contrapartida, a beleza de Ayako Wakao como Mitsuko é proporcional à sua maldade. Ela esconde uma mulher de caráter dúbio, disposta a manipular não apenas Sonoko, mas todos à sua volta, incluindo o noivo e o marido da amante. Sua aparência externa surge na trama como o verdadeiro veneno que ameaça a sanidade de todos, assim como seu egoísmo, que se torna proeminente aos poucos no filme e intensifica a ironia de que Sokono pinta a amante num quadro como se ela representasse uma deusa da misericórdia do budismo.

Para dar conta de expressar essa prisão psicológica que Mitsuko cria, praticamente toda a trama do filme se passa em ambientes internos, longe dos olhos do resto da sociedade que, quem sabe, poderia tirar Sonoko do universo alienado que ela inventou a partir de Mitsuko. Os planos, da mesma forma, são fechados, de maneira que enquadrar mais de dois personagens ao mesmo tempo já passa a impressão de que há um intruso em cena, o que é exatamente o pensamento de Sonoko quando alguém mais se aproxima.

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Complementando essas escolhas, a luz em “Manji” é também uma intrusa, tendo a função primordial de realçar a beleza de Mitsuko, ao passo que Sonoko e Kotaro são, em muitos momentos, meras sombras ou formas que, por receber menos luz, têm suas pequenas imperfeições (seja uma ruga ou o suor) destacadas. Não por acaso, seus figurinos também apresentam cores bem menos vibrantes que o de Mitsuko, embora no geral a paleta utilizada no filme tenha a predominância de tons mais desbotados e frios. A exceção fica por conta do vermelho, presente em dois elementos: o sangue e o veneno.

Entre a passividade e a ação

Em “Manji”, não se pode confundir a servidão de Sonoko para com a bela Mitsuko com um posicionamento passivo da personagem principal. Essa aparente contradição inicia com o fato de que ela é a narradora da história, o que, portanto, já a coloca num papel ativo de reconstrução, a partir de uma percepção particular, do que aconteceu. Em segundo lugar, ela percebe em dado momento que se envereda por um caminho perigoso, mas sua admiração para com um algo maior (a sensação/impressão de plenitude, pureza e amor) a norteia, mais que a própria realidade.

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Por outro lado, os homens que circundam Sonoko parecem dominantes apenas na superfície. Se o marido Kotaru se mostra de início um empecilho, ele posteriormente se entrega ao puro desejo gerado por Mitsuko, compondo o bizarro “quadrado amoroso”, cuja figura do noivo da moça integra a quarta parte interessada. Este também passa longe de ter qualquer controle sobre a situação, e, ao contrário de Sonoko e tal como Kotaru, é passivo perante o próprio desejo.

Nessa complexa construção, nada parece ser o que é e os envolvidos testam a todo o momento os limites de seu controle e sanidade. “Manji” surge então como um verdadeiro estudo da alma humana: grotesco, mas tal como o professor para quem Sonoko reconta sua história, uma vez que adentramos na trama, nada podemos fazer para nos desviarmos dela, tamanho o magnetismo criado por Yasuzo Masumura.