Sei que o Cine Set não é um confessionário, mas preciso fazer uma confissão cinéfila: Da famosa Geração Sexo, Drogas e Rock ‘n’ Roll que Salvou Hollywood do marasmo na década de 70 (ilustrada no livro de Peter Biskind), sempre achei – e acho até hoje – Brian De Palma o cineasta mais talentoso e criativo deste grupo. Francis Ford Coppola ditou o ritmo desta década com obras-primas; Spielberg reinventou praticamente o cinema de fantasia como bom discípulo de Walt Disney; Scorsese mostrou sua versatilidade pop nas crônicas sociais e William Friedkin acertou no experimentalismo intimista dos seus trabalhos. Todos geniais diretores, mas nenhum deles produziu imagens tão belas, verdadeiras pinturas cinematográficas como De Palma, o verdadeiro dono da Mise-en-scène do cinema americano.

Neste período, o cineasta já mostrava sua ousadia com trabalhos cheios de vigor e intensidade, ainda que um tanto imaturos na narrativa. A partir do melancólico romance Trágica Obsessão (1976) é que ele começou a se aproximar de uma consistência artística, densa na medida certa e que indicava um autor cada vez mais próximo de atingir o seu nirvana cinematográfico. E ele veio exatamente com Um Tiro na Noite (1981), uma homenagem e devoção não apenas aos seus mestres – no filme em questão temos Hitchcock e Antonioni – mas, sobretudo ao próprio cinema, sentimento que é facilmente percebido pelo fato de estarmos diante de um filme, que expressa sua fascinação em relação à sétima arte.

Em 2016, Um Tiro na Noite completa exatamente 35 anos do seu lançamento. Revê-lo, nota-se o quanto De Palma soube muito bem conciliar seu entusiasmo e versatilidade – elementos sob a forma de uma energia quase juvenil – em um trabalho maduro, que se apoia na técnica cinematográfica para nos emocionar. É como se o filme fisgasse o espectador racionalmente, pelo ótimo roteiro conspiratório, ao mesmo tempo em que “assalta” o coração por intermédio de técnicas e recursos cinematográficos utilizados, todos a serviço das belas imagens e a acachapante Mise-en-scène.

Na trama, Jack Terry (John Travolta) é um sonoplasta de filmes B de terror. Numa noite, ele está perto de um rio para coletar sons do ambiente para o filme e acaba por presenciar um acidente de carro. Ao salvar a passageira Sally (Nancy Allen), ele descobre que o motorista – que acaba falecendo no local – é o governador George McRyan que as pesquisas apontam como o possível novo presidente. Escutando a gravação que realizou no local do acidente, Jack acredita que o acidente não foi por acaso e está relacionado a uma conspiração política.

Para alguns, De Palma é um mero imitador, mas para outros – a qual me incluo – um inventor, alguém que respira, ama e gosta de cinema. Por isso, vou elencar cinco fatores que me fazem enxergar um Tiro na Noite como a obra-prima deste cinéfilo chamado Brian De Palma:

  1. O olhar sobre a Paranoia Americana

O roteiro escrito pelo diretor além de criar um suspense envolvente, também apresenta o olhar político sobre a paranoia americana da década de 80, principalmente depois do assassinato de Bob Kennedy. Este casamento entre política e poder embalado pela atmosfera de filme noir onde medo e paranoia se misturam, aproxima bastante o filme de A Conversação (1974) de Coppola, ambos como produtos que refletem um período conturbado dos USA. De Palma que no início da carreira na década de 70 sempre soube mergulhar na contracultura – Fantasma do Paraíso (1974) é o melhor exemplo disso – deixa claro a sua visão crítica em relação às figuras de autoridade e os personagens políticos. É a política suja americana que costura assassinatos nos bastidores, despreza os inocentes e os devora quando a noite cai.

  1. As imagens a serviço da poesia da noite

A noite tem um papel importante durante todo filme. Do início majestoso ao final genial, toda a ação transcorre neste período. De certa forma, De Palma insinua que os eventos relacionados às tramas e seus personagens estão envoltos pela noite, que funciona como elemento que move seus atores para sua redenção ou danação. Um Tiro da Noite é um olhar poético da noite, onde as imagens, as luzes e as cores acabam ganhando contornos sublimes através da escuridão. É ela que comanda as ações de Jack e Sally em busca da verdade, assim como desperta ambos do “sono” da vida pacata e acomodada. É curioso como o cineasta utiliza a noite como uma metáfora para a corrida contra o destino que dentro do seu cinema é sempre trágico. Sob este elemento noturno que De Palma encena seu lindo legado cinematográfico: uma obra que transforma o suspense hitchcockiano em uma poesia sobre a noite.

  1. Entre a Redenção e a Danação

Há também o herói característico dos filmes do cineasta: um homem escapando do seu passado, em busca da sua redenção. É curioso, a capacidade que De Palma tem de entender e estender a mão aos seus personagens de um modo simples, sendo esta característica outro belo atributo do filme. Esta dualidade no caráter dos personagens (redenção/danação), tema recorrente na sua filmografia, geralmente culmina no custo da própria sanidade deles. Neste ponto deve-se elogiar o ótimo desempenho e química da dupla Travolta e Allen que já tinham trabalhado juntos com o cineasta em Carrie – A Estranha (1978). Nancy, na época era casada com o diretor que adorava colocar a esposa em papéis sexuais e marginalizados nos seus filmes. Seria um fetiche de De Palma?

  1. Som + Imagem = Montagem (o fazer cinematográfico)

Sabe aquela matemática básica: 1 + 1 = 2 e 2+ 2 = 4. De Palma traduz ela em uma fórmula cinematográfica simples: som + imagem = montagem. É esta construção de imagem e som que encena o fazer cinematográfico, no caso a matéria por excelência. Indica o seu ápice metalinguístico de traduzir o poder da imagem e a utilização dela, na transformação do cinema como arte audiovisual. É um estudo minucioso onde a imagem (aquilo que se vê) e som (aquilo que se escuta) são elementos fundamentais para a compreensão da própria história. De Palma emula um filme imaginativo, com picos criativos na criação das sequências, elaborando cenas fascinantes, como o plano-sequência que abre o filme – uma bela homenagem a Psicose (1960) – passando pela cena onde Travolta monta as imagens através do som, é uma bela declaração de amor do diretor aos profissionais que trabalham na parte técnica dos filmes. O ato final que envolve dois personagens, enquanto fogos de artifício explodem no céu, com direito a câmera descrevendo um movimento circular delirante, similar a outro filme de Hitchcock, Um Corpo que Cai (1957), se torna poética, melancólica e realizada com extrema sofisticação pelo cineasta, graças à magnífica trilha instrumental do gênio Pino Donaggio ao fundo, um casamento perfeito entre som e imagem.

  1. O legado sobre o cinema.

É inegável a influência de Blow Up – Depois Daquele Beijo (1966) de Michelangelo Antonioni em todo o longa. Mas longe de ser uma mera imitação, De Palma parte de um olhar, no caso a obra do cineasta italiano para transformá-la em algo novo, que apesar de guardar algumas semelhanças com o produto anterior, apresenta ambiguidades nas suas camadas que jamais conseguimos determinar se são reais ou ilusórias. No filme italiano, o silêncio é a mora propulsora para a narrativa, enquanto em Um Tiro na Noite, ele transformar-se em um grito que será o responsável em ligar o ato inicial do filme com o seu encerramento. O exercício de metalinguagem se torna ainda mais forte com o uso do Split screen (técnica de dividir a tela pela metade) que ajuda a estabelecer a lógica das duas narrativas no início do filme: de um lado da tela a trama política ocorrendo e do outro Jack preparando os sons. São informações que dividem a tela, mas que são fundamentais para os acontecimentos que virão em seguida. Sem contar no uso do Split Focus responsável pelo padrão visual que une em um mesmo quadro, várias ações e objetos – um exemplo é a cena de Jack ao fundo, enquanto a coruja assume a posição frontal na imagem. Tudo isso, ganha força com a monstruosa fotografia Vilmos Zsigmond.

Por estas várias razões que Um Tiro da Noite é meu De Palma favorito. Mostra todo o esplendor do cineasta, na arte de fazer cinema. É a imagem e som nos estágios mais embrionários da sétima arte. Observo este trabalho do cineasta como um grande passo ao cinema autoral maduro, que procura não apenas reverenciar os diretores que ama. Na verdade, ele parte do legado deles, para demonstrar a sua ode ao cinema. É o legado De Palma ao cinema na sua essência.