Quando ganhou o Globo de Ouro de melhor atriz em um filme de Drama por “A Esposa”, Glenn Close lembrou de uma conversa que teve com a mãe, que, aos 80 anos, sentia não ter conquistado nada, por ter se dedicado e até se anulado em prol do marido. Essa fala não foi em vão: o filme dirigido pelo sueco Björn Runge é basicamente um estudo de personagem sobre uma mulher que foi eclipsada pelos sonhos do homem que amou. Mas, para além de ser um retrato da dominação masculina nas ditas relações amorosas, “A Esposa” é também um palco para o talento da extraordinária Close.

O filme tem a atriz no papel de Joan, a esposa de Joe Castleman, um autor renomado que finalmente é premiado com o Nobel de Literatura. O drama acompanha a viagem do casal a Estocolmo, onde acontece a cerimônia, e mergulha nos sentimentos conflitantes de Joan, que há muito tempo abriu mão de uma promissora carreira como escritora para que o marido pudesse ser um autor de sucesso.

A mais simplista das análises poderia dizer que Joan “não precisava desistir de seu sonho”, mas o roteiro assinado por Jane Anderson – e baseado no romance de Meg Wolitzer – faz questão de enfatizar o quão difícil seria a vida de uma mulher que optasse por trabalhar como escritora entre as décadas de 1950 e 1960. Sim, optar, porque não esqueçamos que Joan é uma mulher privilegiada ao ponto de frequentar a universidade em uma época em que isso era um luxo (mais do que hoje). Mesmo assim, o caminho seria espinhoso: para cada Sylvia Plath ou Patricia Highsmith, quantas não ficaram pelo caminho, anuladas por editoras ou desacreditadas por professores de literatura?

Pelos olhos de Glenn

Os flashbacks do filme surgem em número maior do que deveriam, para mostrar – sem sutilezas – todos os obstáculos que Joan teria que vencer para que seus livros saíssem das prateleiras empoeiradas das universidade – esse momento poderia ser sintetizado na forte participação de Elizabeth McGovern como uma escritora que, a exemplo de várias outras, foi vítima do machismo e não esconde a compreensível amargura de não ter vencido os preconceitos.

Passado e presente (no caso, 1992, quando acontece a cerimônia do Nobel que premia Joe) se fundem e até dialogam com fluidez no filme, mas é certo que “A Esposa” cresce quando a trama evita as explicações por meio de flashbacks e aposta no trabalho forte de seu par de protagonistas. Jonathan Pryce é daqueles atores regulares que têm bons desempenhos em quase todos os seus projetos, mas aqui ele vai além e cria um tipo tão arrogante quanto inseguro, o símbolo da mediocridade.

Já Close entrega mais uma grande atuação para um rol que conta com personagens icônicas como a Alex Forrest de “Atração Fatal” e a Marquesa de Merteuil de “Ligações Perigosas”. O trabalho da atriz aqui é carregado de sutileza e impressiona nos momentos de quietude, como a sua reação ao descobrir que o marido fora premiado com o Nobel, sua quase conformidade com o tratamento que lhe é reservado nos dias que antecedem a cerimônia ou o olhar que não esconde mais os sentimentos guardados por mais de 30 anos naquele que é o clímax do filme.

O olhar, aliás, é o trunfo de Glenn (não que seja uma surpresa a qualquer um que já assistiu à emblemática cena em que sua personagem tira a maquiagem, ao fim de “Ligações Perigosas”). Ela também brilha nos momentos de explosão, onde precisa lidar com os egos feridos dos personagens masculinos – seja o marido, o filho e o escritor que finalmente consegue arrancar dela o seu segredo mais profundo.


“Uma escritora magoada”

É, Joan é rodeada por homens. Nas poucas cenas que divide com mulheres, quase não há troca, seja pela desconfiança ou pela sensação de que tudo aquilo o que está vivendo é falso. “A Esposa” é mais que um filme melancólico: é um retrato de como as mulheres da geração de Joan foram criadas não apenas para serem inimigas ou competidoras umas das outras, mas também para servir a seus maridos e serem boas esposas, que vão ao cabeleireiro e fazem compras enquanto eles se preparam para receber o prêmio Nobel. O roteiro não exclui a aura abusiva que paira sobre o casamento de Joan e Joe e sempre coloca uma discussão pesada próxima a um momento que dê aos dois uma falsa sensação de proximidade, aquela armadilha que prende tantas mulheres em relações infelizes.

Interessante ainda é notar que esse filme chega ao Brasil na mesma época em que “Colette”, outra produção que toca no mesmo tema, e pior: é baseada em uma história real. É um momento rico para a mulher no cinema, já que o espectador tem a oportunidade de ver como situações semelhantes tocam de diferentes formas a personagens diferentes. Joan é “a esposa” e aceitou com certa resignação o seu “dever”, mas a trama nunca lhe coloca como culpada pelos acontecimentos que lhe afetam. Do contrário, o drama joga luz (literalmente, vide a direção de fotografia) em uma mulher que, por uma razão que ela julgava ser válida, desistiu de seus sonhos. Mas, como ela mesma diz em determinado momento do filme, “não há nada mais perigoso que um escritor magoado”. E alguma hora essa mágoa não caberá mais em si mesma.