Existem filmes que fazem com que a gente se divirta vendo cenas de assassinato e mutilação. Tudo bem, faz parte do acordo tácito do cinema, o de “comprarmos” a fantasia toda vez que entramos na sala escura ou damos “play” em casa. Existem também filmes que fazem com que a gente reflita sobre a violência na tela. Ótimo, isso também é válido e muito bom. Mas existem outros… aqueles que nos pegam pelo pulso e dizem: “Ok, mas por que você tá mesmo vendo isso?”. A Tortura do Medo, clássico britânico que está celebrando 60 anos de lançamento em 2020, é um caso raríssimo de filme capaz de funcionar nos três níveis. Por isso mesmo, foi destruído na época do seu lançamento pela crítica e considerado uma verdadeira imundície. Hoje, é um clássico do cinema, e um dos maiores thrillers já realizados.

Como quase sempre ocorre, o título original do filme, Peeping Tom, é mais acurado e descreve melhor as intenções e o tom da obra. “Peeping Tom” é a gíria em inglês para a pessoa “enxerida”, como dizemos por aqui, aquela que fica espionando os outros, muitas vezes com conotação sexual. Bem, o cinema faz de todos nós espiões, enxeridos. Pela lente da câmera e da história sendo contada, nós espionamos fragmentos das vidas de pessoas, geralmente fictícias, às vezes não. Não gosto de concordar com o slogan do BBB, mas “dar uma espiadinha”, com teor sexual mesmo, é um componente essencial do que faz o cinema ser o cinema, e do que o tornou a grande expressão artística do século XX.

Em A Tortura do Medo, espiamos desde o início. Vemos, pelo ponto de vista de uma câmera filmando, alguém chegar junto a uma prostituta num beco escuro e combinar um programa. A câmera a segue enquanto os dois vão até o quarto dela. Então, de repente, ela começa a se assustar e a vemos sendo assassinada. É o tipo de cena que veríamos depois em inúmeros outros filmes, especialmente nos slashers norte-americanos dos anos 1980. Vemos o assassinato pelo ponto de vista do assassino, e como nos identificamos com o olhar da câmera, por um momento nós somos o assassino. O filme já começa chutando a porta.

Mas, ao contrário da maioria dos filmes de mistério, em A Tortura do Medo descobrimos logo cedo quem é o assassino: É o jovem Mark Lewis (interpretado por Karlheinz Böhm). E ele não é nenhum monstro: é um sujeito de fala mansa, boa pinta, e o sotaque estranho do austríaco Böhm o torna até mais humano aos nossos olhos, e mais deslocado dentro da paisagem inglesa. Descobrimos mais tarde que ele trabalha num estúdio de cinema, que na pensão onde mora – e da qual ele é dono – existe um quarto escuro onde ele revela e guarda centenas de rolos de filme, que ele é atormentado por uma infância na qual foi vítima das experiências psicológicas do seu pai, e que está matando mulheres para gravar um documentário sobre… o medo.

Ele mostra alguns bizarros filmes de família à sua simpática vizinha (vivida por Anna Massey), e neles seu pai é interpretado pelo diretor de A Tortura do Medo, Michael Powell (1905-1990). Na época o mais celebrado cineasta britânico, autor de obras respeitadas e de sucesso como Os Sapatinhos Vermelhos (1948) e Narciso Negro (1947), Powell demonstrou uma visão arguta e sem concessões. Ele não livrou nem a própria cara: Neste filme, até o diretor se expõe e se inclui no rol de psicóticos ao redor da experiência. Parece que ele fez de tudo ao seu alcance para tornar A Tortura do Medo perturbador para o espectador, e nisso foi bem sucedido.

TESOURO SUBESTIMADO

Primeiro, sentimos uma grande empatia pelo psicopata. Não chegamos a torcer para que ele mate, mas sentimos pena dele e passamos a história toda querendo que ele escape dos seus demônios. Segundo, o filme se mostra ousado para a época, explorando de forma direta o tabu do erotismo na sociedade londrina da época – o trabalho paralelo de Mark é como fotógrafo, tirando fotos de mulheres nuas para clientes desejosos de pornografia, e a cena em que um simpático senhor tenta comprar essas fotos na loja onde o protagonista atua como fotógrafo rende um divertido momento com um afiado humor britânico. Seios aparecem numa cena, em outras a arma de Mark possui uma conotação claramente fálica.

Powell também dá ao filme uma atmosfera ligeiramente surreal, criando junto com o diretor de fotografia Otto Heller uma experiência em Eastmancolor com cores intensas – o diretor já tinha criado belíssimas imagens com paletas de cores fortes em alguns dos seus filmes anteriores. Os Sapatinhos Vermelhos é um espetáculo…  O resultado é uma obra de visual único, ao mesmo tempo naturalista – devido aos cenários, a temática, e até mesmo o fato de que várias cenas são filmadas em cenários escuros, como a sala de projeção de Mark – e expressionista, com seus vermelhos fortes e perigosos e imagens saturadas.

Tudo somado – o aspecto visual, a temática e o enfoque – e o que se tem é uma obra realmente única e perturbadora. E aqui temos alguns SPOILERS à frente…

Quando descobrimos ao final que Mark queria filmar o medo no rosto das suas vítimas refletindo o horror da morte de volta para elas, percebemos que na verdade ele se comportava como um diretor de cinema, dirigindo suas atrizes. E aí o filme todo vira uma metáfora sobre o cinema, apontando um espelho na nossa direção também ao confrontar o nosso voyeurismo e nossa identificação com o protagonista psicótico. O resultado é um filme que faz o espectador se sentir meio sujo, ao mesmo tempo em que o entretém e até o faz rir em alguns momentos – As cenas no estúdio de filmagem, quando vemos uma comédia banal ser rodada, aliviam um pouco a tensão e de modo indireto contribuem para nos tornar cúmplices da experiência.

Por isso mesmo, a reação ao filme foi terrível no lançamento. A Tortura do Medo foi um fracasso de bilheteria. Um crítico sugeriu que o longa “fosse lançado no esgoto”. Michael Powell até dirigiu novamente, mas sua carreira na Inglaterra se acabou. No mesmo ano, outro inglês, Alfred Hitchcock, também lançou uma obra sobre um psicopata, mas em Hollywood. Psicose (1960) foi um sucesso internacional, e embora seja realmente melhor e mais icônico que o filme de Powell, é preciso dizer que A Tortura do Medo é mais ousado e perturbador. Era também uma obra à frente de seu tempo, e começou a ser reabilitada nos anos 1980 graças a Martin Scorsese, que o exibiu nos Estados Unidos. Powell chegou até a se casar com a montadora Thelma Schoonmaker, parceira e amiga de Scorsese de longa data.

O tempo foi bom para com A Tortura do Medo, mas ainda parece um filme meio subvalorizado. 60 anos depois, percebe-se que ele influenciou cineastas como Brian De Palma e Wes Craven, e podemos até ver algumas digitais dele nos subgêneros slasher e found footage. Mas, talvez, o próprio fato dele ainda ser não tão visto e admirado quando deveria pode ser explicado pela sua coragem. É um filme que não poupa ninguém na sua visão sobre o medo no cinema e sobre a nossa eterna fascinação com sexo e violência nas telas. Michael Powell cria quase uma história do Marquês de Sade em forma de filme – mas com classe e pitadas de humor britânico, claro – e usa a câmera como arma. Poucos filmes, seja nos gêneros terror e suspense ou fora deles, tiveram a coragem de fazer o mesmo.

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