A Mostra Competitiva de Curtas-Metragens do Amazonas Film Festival é uma espécie de “termômetro” para o cinema local. Em seu conjunto, as obras permitem avaliar a evolução, técnica e artística, dos nossos realizadores, bem como os possíveis caminhos que o cinema amazonense tem pela frente.

Isso é fato. Mas a Mostra desse ano trouxe algumas questões intrigantes que precisam ser esclarecidas, em nome da credibilidade do evento. O número de participantes, por exemplo. A falta de um critério claro para a seleção dos filmes pode ter sido benéfica em termos de quantidade (17 filmes, quase o dobro do ano passado), mas criou uma enorme divergência de formatos, abordagens e até mesmo de tempo de duração entre as obras. Como avaliar um filme como “Um Minuto de Brasilidade”, uma reunião de depoimentos sobre os protestos de junho em Manaus, com rigorosamente 1 minuto e 20 segundos, ao lado de “Germes”, uma ficção elaborada, de cerca de 10 minutos? Sem entrar no mérito da qualidade (o que vou fazer logo adiante), não há competição possível.

E o que explica um mesmo cineasta ter três filmes na mesma disputa? Foi o caso de Dheik Praia, que compareceu com “A Palavra de Ordem é Ocupar”, “E as Crianças Continuam Cantando” e “Um Braço de Rio no Quintal”. Obviamente, a decisão não foi da artista, mas, mais uma vez, surge um privilégio injustificado, que fere a igualdade de condições necessária a uma competição desse gênero.

Quanto aos filmes, o que ficou claro é que, após anos de oficinas e criação de núcleos de produção, o cinema amazonense alcançou um padrão inédito de domínio técnico e profissionalismo, o que o coloca, nesse sentido, no mesmo patamar de qualquer centro audiovisual brasileiro. Infelizmente, a preocupação com a fotografia, a iluminação e a montagem não é a mesma dispensada ao trabalho dos atores ou, principalmente, à criação de tramas competentes. Isso deixa uma grande frustração após um ano que trouxe “Parente”, “A Última no Tambor”, “Rota da Ilusão” e “A Segunda Balada”, todos promessas de um salto de qualidade que, infelizmente, ainda estamos aguardando.

Por fim, não custa lembrar: as análises abaixo não visam desqualificar ninguém, mas apenas (e tão somente) contribuir para o diálogo e o avanço da arte cinematográfica no Amazonas. Sinta-se livre para discordar e comentar.

Boa leitura!


Anos de Luz, de Aldemar Matias

Anos de Luz, de Aldemar Matias

O novo trabalho de Aldemar Matias (“Parente”, “A Profecia de Elizon”) é mais uma evidência de que estamos diante de um dos maiores cineastas já surgidos no Amazonas. Fruto de um curso realizado na Escola Internacional de Cinema e TV de San Antonio de Los Baños, em Cuba, Anos de Luz é uma sensível reflexão sobre a memória, a partir da trajetória do fotógrafo Gregorio Rivera, o “homem certo no lugar certo” em 1959, quando teve acesso às tropas revolucionárias de Fidel Castro. Com 93 anos, Rivera dá duro para preservar a forma física e as lembranças de sua longa vida, mas é a sua incapacidade que empresta a pungência e a poesia ao curta.

Ainda que não esteja no mesmo de nível de “Parente” (mas quantos filmes amazonenses alcançaram esse nível nos últimos anos?), a produção mostra um realizador maduro, de grande domínio técnico e aguda sensibilidade. “Anos de Luz” também serve para demonstrar o que é um documentário no cinema: um veículo de ambições artísticas, fundado acima de tudo na força da imagem. Lição que os outros documentaristas da Mostra ainda não absorveram. – NOTA: 8,5


Cena de Jardim de Percevejos, de Francis Madson

Jardim de Percevejos, de Francis Madson

Para concluir o Festival numa nota alegre (embora esta não tenha sido a intenção dos realizadores, muito menos do diretor Francis Madson), o filme que encerrou a Mostra de Curtas Metragens Amazonas em 2013 é uma das obras mais surpreendentes e intrigantes surgidas este ano no nosso cinema. Jardim de Percevejos, apesar de ser o trabalho de um estreante (quem diria!), esbanja personalidade e propósito em suas imagens viscerais.

Explicar a trama não adianta muito: o filme é um apanhado perturbador da vida de um homem misterioso (Dimas Mendonça), cujo rosto é coberto pelo que parece ser uma mochila velha. Entre sequências de humor perverso, amoralista, e um profundo sentimento de angústia, a obra inquieta e instiga o espectador como nenhum outro filme do festival, à exceção de Cabelo Ruim, conseguiu. Experiência verdadeiramente renovadora dentro do cinema amazonense, o filme é para os seus colegas experimentais o que Anos de Luz é para os documentários: o exemplo a ser seguido. – NOTA: 8,5


Cena de Watyama, de Everton Macedo

Watyama, de Everton Macedo

O melhor dos documentários do festival (não contando o de Aldemar, que, como já expliquei, está em outro plano), mas, ainda assim, não é cinema. De qualquer forma, Watyama, de Everton Macedo, é uma reportagem muito mais corajosa e envolvente do que Artistas – Um Espetáculo Urbano, para não falar nas tentativas de Dheik Praia e Liliane Maia.

A trama se centra no ritual da tucandeira (ou watyama) – uma formiga grande, com uma ferroada de dor indescritível, que é colocada, às dezenas, nas mãos de rapazes da tribo Sateré-Maué (de Parintins), para marcar a passagem da infância à idade adulta. A demonstração dos preparativos, as expectativas dos jovens, o porquê do ritual, tudo é ricamente ilustrado em entrevistas e imagens. Mas um elemento fundamental fica faltando: o pós-cerimônia.

Como se sentem os jovens após a experiência? Quantos deles aguentam até o final? Quantos deles desistem? A falta desse dado lança um vácuo sobre o filme, como uma peça que falta para completar o quadro. Sem saber o porquê dessa omissão, resta elogiar a competência do diretor, que fez um trabalho digno do gênero, e esperar que o seu talento floresça em propostas mais ousadas. – NOTA: 6,0


Cena de Um Braço de Rio no Quintal, de Dheik Praia, curta exibido no Amazonas Film Festival 2013

Um Braço de Rio no Quintal, de Dheik Praia

O terceiro (e último) trabalho de Dheik Praia na Mostra é também o melhor, mas continua bem abaixo de Rota da Ilusão. Uma garota (Daniela Blois), no caminho para a faculdade, ao ver o tédio e a modorra ao seu redor, imagina uma realidade onde tudo se transforma em felicidade e arte.

O mote simples é prejudicado pela produção nitidamente apressada, que resultou em atuações amadoras, uma montagem “truncada”, que não consegue estabelecer transições suaves entre sonho e realidade, e o uso insistente e repetitivo da trilha sonora. Do lado positivo, podemos destacar o belo texto da narração em off, de autoria da própria diretora, e a objetividade da trama, que não se perde nos devaneios da personagem, avançando com tranquilidade.

Muito pouco para a qualidade e maturidade do curta anterior de Dheik, o que, somado aos outros reveses da diretora no Festival, nos deixa suspeitando se ela realmente já está num nível mais maduro de sua expressão artística – é esperar pra ver. – NOTA: 6,0


Cena de Artistas – Um Espetáculo Urbano, de Ari Santos, Adson Queiroz, Abelly Cristine e Daniel Soares

Artistas – Um Espetáculo Urbano, de Ari Santos e outros

Outro dos documentários da Mostra, Artistas – Um Espetáculo Urbano cai na mesma falta de profundidade de A Palavra de Ordem é Ocupar e Noçokén, com quase nenhum insight sobre a vida íntima e o dia-a-dia dos artistas de rua retratados no filme – além do que eles mesmos não tenham fornecido. Diferente deles, porém, a obra de Ari Santos, Adson Queiroz, Abelly Cristine e Daniel Soares não é propaganda pura e simples, mas uma reportagem, disfarçada de cinema.

Com toda a competência de Artistas… na realização de seu objetivo, fica a sensação de que o lugar dele não é na Mostra do AFF, mas sim num programa de variedades ou numa TV Cultura da vida. Bem-produzido, com imagem e áudio impecáveis, o filme, porém, se ressente daquelas características que citei há pouco. Marca expressiva da habilidade técnica e superficialidade de conteúdo que marcou o cinema amazonense em 2013. – NOTA: 5,0


Cena de Verdade Nua e Crua, de Wagner Santinny

Verdade Nua e Crua, de Wagner Santinny

A crítica raivosa de Wagner Santinny contra o sistema de ônibus de Manaus talvez dê voz a muitos que, assim como ele, se sentem ultrajados pelas condições do serviço na cidade. Mas, como cinema, Verdade Nua e Crua se contenta em ser um panfleto, com as imagens – num incomum e por isso admirável preto-e-branco – apenas complementando o discurso.

A ênfase dada à imagem e a seriedade do trabalho, porém, colocam o filme acima de A Palavra de Ordem é Ocupar, Noçokén e Lembranças do Amanhã.

Mas não muito. – NOTA: 5,0


Cena de Lembranças do Amanhã, de Bruno Pereira

Lembranças do Amanhã, de Bruno Pereira

Poeticamente (e com muita boa vontade), dir-se-ia que Lembranças do Amanhã almeja ser uma espécie de haikai cinematográfico, um curto e profundo enunciado sobre as paisagens e costumes de um lugar (o Amazonas ribeirinho) prestes a ser tragado, inexoravelmente, pela marcha do tempo.

A verdade é que o filme de Bruno Pereira é uma breve (ainda bem) costura de estereótipos preguiçosos dos costumes do Amazonas. Um pensamento aqui, uma mãe d’água ali, computadores que entulham os rios e destroem a fauna, e uma dose generosa de “É meeermo!” e “Olha já!” em 5m50s. É preciso, porém, elogiar a bela fotografia de tons dourados e marrons, do próprio diretor – beleza que elude os demais aspectos do filme. – NOTA: 4,5


Cena de A Palavra de Ordem é Ocupar, de Dheik Praia

A Palavra de Ordem é Ocupar, de Dheik Praia

O primeiro dos três (!?) filmes de Dheik Praia na Mostra é decerto um filme – mas não é cinema.

A Palavra de Ordem é Ocupar é o registro da 1ª edição do Arte Ocupa Manaus, movimento encabeçado por artistas independentes que, no início desse ano, promoveu manifestações artísticas numa área pouco frequentada do Centro da cidade.

Com depoimentos dos envolvidos e entrevistas com os moradores da área, o filme não vai além de uma mera peça de propaganda para o Arte Ocupa Manaus, com pouco ou nada de revelador sobre os artistas, a área escolhida ou os efeitos causados pela intervenção. Fotografia, montagem e música também são apenas funcionais, sem acrescentarem nada ao interesse da obra.

Um entreato modesto depois de Rota da Ilusão ou evidência de uma técnica ainda deficiente? Aguardem os próximos capítulos. – NOTA: 4,0


Cena de Noçokén, de Liliane Maia

Noçokén, de Liliane Maia

Aqui é a mesma coisa, só os recursos de produção são muito mais vultosos do que o do-it-yourself de Dheik Praia. Noçokén, de Liliane Maia, tem, porém, o prejuízo adicional de alimentar expectativas que a obra, ao final, não cumpre. Uma homenagem aos bastidores do boi-bumbá de Parintins, o filme também se limita à confortável tarefa de apenas entrevistar, superficialmente, alguns dos envolvidos. Ao menos, até pela duração mais longa (20 minutos – o maior curta dessa edição), o filme traz uma maior capacidade de análise e contextualização, com a participação de historiadores e sociólogos, para familiarizar o espectador com o tema.

Mas isso de nada vale se o que vemos a seguir é só uma migalha dos preparativos pro Festival. A “magia” de Parintins só aparece mesmo nas imagens, já conhecidas, das alegorias enormes, delirantes, que povoam o Bumbódromo em junho. O que mais há para se saber sobre o dia-a-dia dos envolvidos, as suas carreiras, as suas dificuldades, deve ficar mesmo pra um outro filme. E a falta de confiança no poder da imagem, fundamental para que um filme possa aspirar a ser cinema, enche Noçokén de inúmeras e desnecessárias narrações.

Em resumo: em termos turísticos, uma boa introdução ao festival. Em termos cinematográficos, um documentário não mais que competente. Em termos de documentário, apenas um arranhão na superfície do tema. E, em termos publicitários, uma longa e bem-sucedida propaganda da cidade. – NOTA: 4,0


Cena de Eles Podem Voltar, de Roberto Nazaré

Eles Podem Voltar, de Roberto Nazaré

Emendando numa sequência aflitiva (sem trocadilho), a tentativa de terror psicológico do diretor Roberto Nazaré, num cenário tipicamente amazônico, falha pela inabilidade em construir climas, com informações que seriam cruciais para a trama – o que teria acontecido no passado da mulher, o que a estaria perturbando agora – sendo quase que arremessadas pelo filme, de tão rápidas. As atuações amadoras só pioram o resultado final. Ainda assim, o filme é mais honesto e apreciável do que o exercício vazio do trabalho seguinte. – NOTA: 3,0


Fora do Eixo, de Marcos Tubarão

Fora do Eixo, de Marcos Tubarão

O trabalho de Marcos Tubarão também soou deslocado no AFF, mas por outros motivos. Com sua narrativa pretensamente fragmentária e contestadora, a obra do cineasta soa francamente datada, parecendo pertencer ao início dos anos 1980. Com um personagem que solta, em livre associação de ideias, críticas à Zona Franca, queixas insistentes ao seu trabalho de datilógrafo, observações sobre tipos da noite manauara e até sobre a chegada da lambada (!) no rádio, Fora do Eixo parece estar, mesmo, fora do tempo. O uso de efeitos gráficos toscos e ruídos industriais só aumenta a aura retrô (ou ruim mesmo) do filme. Avant garde vazia, que não vai a lugar algum. Muito melhor ver Herois da Decandensia, e beber direto da fonte. – NOTA: 2,0


Cena de E as Crianças Continuam Cantando, de Dheik Praia

E as Crianças Continuam Cantando, de Dheik Praia

Outra escolha inexplicável. Trabalho para um curso em audiovisual da diretora Dheik Praia, E as Crianças Continuam Cantando é uma colagem de rostos de crianças sorridentes, com uma trilha de música folclórica alegre por cima, com duração de 2 minutos 30 segundos. E só.

O título dá a entender que os rostos alegres são uma afirmação de esperança face às dificuldades da vida, mas nada disso está no filme. Como trabalho universitário, E as Crianças… pode até ser considerado válido, por suas qualidades de montagem e casamento entre música e imagem. No entanto, a diretora inscreveu o filme na Mostra como um trabalho autônomo, da mesma maneira que A Palavra de Ordem é Ocupar e Um Braço de Rio no Quintal. É assim, portanto, que eu tenho que avaliá-lo.

Um filme, então, vazio de sentido, mero exercício técnico, sem nenhuma ambição artística e incapaz de comunicar qualquer coisa ao espectador. E, acima de tudo, mais uma decepção para quem, como eu, admirou Rota da Ilusão. – NOTA: 1,5


Cena de Um Minuto de Brasilidade, de George Augusto

Um Minuto de Brasilidade, de George Augusto

A escolha mais controversa do festival. Um apanhado brevíssimo (1 minuto e 20 segundos!) de depoimentos soltos e desconexos de participantes dos protestos de junho, Um Minuto de Brasilidade não apresenta absolutamente nenhum atrativo além do registro (superficial) daquele momento, feito pelo diretor George Augusto. Talvez (talvez!) num festival de filmes de um minuto, e olhe lá. – Nota: 1,20


Cena de  Enquanto Nós, Vivos!, de Fabiano Barros

Enquanto Nós, Vivos!, de Fabiano Barros

Este talvez tenha sido o pior filme do Festival em 2013, pela falta de foco, coerência, propósito e significado em suas imagens – a despeito da intenção (ou pretensão) do diretor Fabiano Barros, que chegou a recitar um poema no palco antes da exibição da obra. Teoricamente, uma reflexão sobre a consciência de estar vivo, Enquanto Nós, Vivos, talvez pelo pudor em ser mais explícito ou emocional, acabou resultando em experimentalismo vazio, incompreensível, inócuo. Sendo tão curto (dois minutos), pode ser facilmente passado adiante. – NOTA: 1,0