“As Boas Maneiras”, novo filme de Juliana Rojas e Marco Dutra, tem um quê de indescritível, basicamente porque parece querer ser tudo de uma vez. Drama social? Confere. Suspense com monstros? Confere. Filme LGBT? Confere. Apesar disso, o que poderia ser uma colcha de retalhos estilística acaba sendo um dos mais interessantes expoentes brasileiros nos festivais internacionais, que levou o Prêmio do Júri no Festival de Locarno e também teve passagens bem-quistas pelos Festivais de Sitges e de Londres.

Como vários filmes nacionais da atualidade, “Boas Maneiras” está preocupado em tomar nota da disparidade entre classes sociais no Brasil, ainda que seu foco principal não seja exatamente esse, diferentemente do trabalho anterior da dupla, “Trabalhar Cansa”. Aqui, o foca é na vida de Clara (Isabel Zuaa), moradora de uma zona periférica de São Paulo recém-contratada como governanta de Ana (Marjorie Estiano), rica filha de fazendeiros que habita um amplo apartamento na área nobre enquanto espera o nascimento de seu filho. A partir de então, a relação de Clara e Ana sofre diversas mutações que formam a espinha dorsal de um filme que, como suas personagens, se reconfigura repetidamente.

A diferença das duas fica clara logo de cara considerando os espaços que habitam. Como em “Trabalhar Cansa”, há um uso forte de elementos físicos e arquitetônicos como parte do drama, não muito diferente do que Kléber Mendonça Filho traz em seus filmes. Clara mora num quarto alugado em uma viela escura, iluminada quase sempre com luzes artificiais, enquanto a vida de Ana se dá em espaços amplos como farta luz do sol. A governanta é íntegra, mas acaba aceitando a subserviência do trabalho pela necessidade, enquanto sua patroa desconhece o mero conceito dessas privações, uma vez que suas memórias se resumem a festas, propriedades e uma noite de amor com grandes consequências.

Apesar da situação adversa, Clara permanece alerta e esperta e, quando Ana começa a desenvolver comportamentos estranhos, é ela quem conecta os pontos A e B e leva a trama para a frente. É neste momento em que o filme oferece uma grande ruptura e nos leva para sete anos no futuro, com Clara cuidando de Joel (Miguel Lobo), filho de Ana, até um acontecimento abalar esse novo contexto.

Se o filme anterior da dupla já apontava para esta habilidade, aqui, Rojas e Dutra confirmam seu talento para balancear narrativas polimorfas com profundas mudanças tonais. Em seu cinema, nada é seguro e uma simples cena pode recontextualizar todo o filme. “Boas Maneiras” é, em essência, dois filmes em um: o primeiro focando na relação entre Clara e Ana e o segundo, na entre ela e Joel.

Como fio condutor, Clara serve como uma metáfora de um amor altruísta que encontra precedente na árvore do conto infantil americano The Giving Tree (que, por sua vez, serviu de base para o curta “I’m Here”, de Spike Jonze). Uma vez envolvida, ela toma uma série de decisões potencialmente perigosas em prol daqueles que ama, a despeito de sua inteligência e pragmatismo.

Esse subtexto é o que coloca o filme como um herdeiro tanto do atual cinema social brasileiro quanto dos contos de fada de Hans Christian Andersen. Se o grande contista norueguês vivesse na São Paulo do dias de hoje, ele estaria na primeira fila para conferir “As Boas Maneiras”. Você deveria estar também.