Suspenses domésticos, quando bem feitos, acabam rendendo boas experiências. É o caso deste Fuja, lançado na Netflix – iria originalmente para os cinemas, mas a pandemia alterou esses planos. Não há nada nele que já não tenhamos visto antes, em outras obras tanto melhores quanto piores que ele. Mas o longa do diretor Aneesh Chaganty, o mesmo do interessante Buscando… (2018), consegue fazer direito o básico, prende a atenção do espectador até o desfecho e o mantém tenso – e essas, no fim das contas, são as principais obrigações de todo thriller. Fuja, de quebra, ainda tem como alicerces duas atrizes realizando trabalhos inspiradíssimos. Assim, a receita não tinha como desandar.
No centro do longa, temos uma relação entre mãe e filha. Diane (interpretada por Sarah Paulson) sempre cuidou da sua filha Chloe (vivida por Kiera Allen), deficiente física. Cuidou de verdade: proveu para ela, a protegeu de enfermidades e também do mundo exterior, além de educá-la. Agora, a adolescente Chloe está prestes a ir à faculdade e encarar novos desafios na vida. As duas moram em uma casa remota e o relacionamento entre elas não é, de modo algum, algo disfuncional. Porém – e em filmes sempre há um – Chloe começa a descobrir alguns fatos sobre sua mãe… Não que o espectador já não estivesse com o desconfiômetro ligado, certo? Uma cena de abertura esquisita e outra com Diane num grupo de apoio já sugerem que a mulher não é totalmente normal.
Quanto menos o espectador souber sobre Fuja, melhor será a experiência. Mas vale ressaltar que, como Diane tem o rosto e o corpo de Sarah Paulson, isso já liga uma luz de alerta na mente do espectador mais atento. Paulson vem fazendo carreira nos últimos anos com personagens instáveis, quando não malucas mesmo. Ela sempre transmite a sensação de uma profunda intensidade por trás dos olhos e do rosto, ainda mais nesses papéis. Na recente série Ratched, ela conseguia às vezes elevar o material apenas com seu rosto de pedra e seu comportamento estudado. Em Vidro (2019), ela perturbava o espectador ao parecer simpática! Isso apenas para ficar nos seus trabalhos mais recentes… Essas mesmas características estão presentes em Fuja, fazendo desta mais uma atuação da atriz que é eletrizante de se presenciar.
Já Kiera Allen, que realmente é deficiente física na vida real, demonstra ser uma verdadeira revelação do projeto. O roteiro lhe dá um desafio físico a cumprir no papel, e também exige que ela atue de igual para igual com uma das melhores atrizes da TV e do cinema de Hollywood na atualidade. E Allen se sai muito bem: torcemos por ela, em nenhum momento ela deixa Paulson roubar de verdade o filme, e por vários trechos ela o carrega, em virtude de atuar sozinha num bom número de cenas. E de quebra, sua presença traz uma dimensão mais real à personagem, mais profunda, e isso ajuda a história imensamente. Sem dúvida, para além de considerações politicamente corretas, a presença e a atuação de Allen são os elementos que dão a Fuja sua força.
INFLUÊNCIAS DE ‘LOUCA OBSESSÃO’
Chaganty constrói o filme ao redor de suas atrizes, mas também não se esquece de fazer seu trabalho. A direção é bem efetiva e, assim como tinha demonstrado em Buscando…, Chaganty demonstra grande habilidade na condução do suspense. Nisso, ele é auxiliado pela montagem, que mantém o filme sempre ágil e interessante, e pelo roteiro, que dispõe com muita competência as pistas para que Chloe desvende o mistério ao seu redor. Por causa desse trabalho competente, que diretor e roteirista não apressam nem fazem de qualquer jeito, até aceitamos um ou outro momento mais exagerado que surge na segunda metade da trama.
Com uma forte influência do clássico Louca Obsessão (1990), Fuja é uma delícia de suspense, com uma trama focada e algumas pitadas de inverossimilhança para dar tempero. É um filme e não tem vergonha disso, feito para ser ver com a pipoca do lado e saboreando a tensão, e as presenças de Allen e Paulson evitam que ele se torne um mero exercício de estilo.
O filme só tropeça de verdade nos minutos finais, quando se estende um pouco além do que deveria e cai na bobagem – o final, aliás, também era onde Buscando… derrapava um pouco, o que indica que Chaganty ainda precisa refinar um pouco mais os seus instintos. Em todo caso, seu Fuja é um belo acerto. Hoje em dia, obras como essa, enfocando suspenses da vida doméstica que buscam se relacionar com a experiência do espectador, são o arroz-com-feijão em streamings e nas terríveis produções do canal Lifetime. Fuja nos relembra o que esse tipo de filme pode ser, e o quanto pode ser envolvente, nas mãos de realizadores competentes.