Não é de hoje que o cinema feito no Irã se destaca entre os seus pares do Oriente Médio. Na década de 1990, nomes como Abbas Kiarostami, Mohsen Makhmalbaf, Dariush Mehrjui e Jafar Panahi, entre outros, ganharam notoriedade em festivais e no radar dos cinéfilos com obras de um lirismo e uma força visual arrebatadoras. Infelizmente, para muitos – porque estão perdendo filmes sensacionais –, ganhou também pechas como chato, lento e outras palavras menos delicadas.

Sim, o oba-oba em torno do cinema iraniano foi um pouco demais, e muitos dos filmes aclamados no calor da novidade eram de fato lentos, formalísticos, até umbiguistas. Mas não todos – não cometa o erro de desprezar obras como Através das Oliveiras (1994), O Círculo (2000) e A Caminho de Kandahar (2001) só porque o cinema iraniano, segundo alguns, é devagar. Você corre o risco de passar batido pela filmografia estupenda de Asghar Farhadi, um dos cineastas mais intensos e atilados do cenário atual.

Desde seu primeiro filme, conhecido no Ocidente pelo título em inglês, Dancing in the Dust (2003), o persa tem estatelado críticos e plateias com sua visão complexa das relações humanas, onde atos e decisões do passado retornam com o peso de elefantes para atormentar o presente.

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Nascido em 1972 na cidade de Homäyünshahr, Irã, Farhadi é filho de uma família afluente na província de Isfahan, uma dos mais prósperas e urbanizadas do país. Sua infância e juventude – e a paixão pelo cinema – foram moldadas pelo impacto de duas momentosas transformações na história e cultura persas. A primeira, claro, foi a chegada ao poder do aiatolá Khomeini (1902-1989), cujo sinistro fundamentalismo lançaria uma sombra – social, política, econômica – da qual o Irã, até hoje, não foi capaz de emergir, e que permeia cada fotograma da obra do cineasta. A segunda, ainda bem, foi para melhor: o movimento de renovação do cinema iraniano, que, a partir da década de 1980, criaria um corpo fortíssimo de diretores e obras, capaz de marcar o cenário internacional e colocar o país na linha de frente do cinema asiático.

Farhadi foi espectador e participante desse processo. Formado em artes dramáticas e direção teatral, o garoto de Isfahan começou a trabalhar com cinema no fim dos anos 1990, dirigindo curtas-metragens independentes e escrevendo roteiros para a TV estatal iraniana. Uma colaboração com o diretor Ebrahim Hatamikia (conhecido por seus documentários sobre a guerra Irã-Iraque na década de 80) foi decisiva para Farhadi chegar à produção profissional. A estreia, em longas-metragens, se deu com o já citado Dancing in the Dust (Raghs dar Ghobar, 2003). No filme, um rapaz (Yousef Khodaparast) tem de acertar as contas com a família da esposa recém-casada, depois que esta descobre que a mãe dele é uma prostituta. Relativamente mais leve do que a obra posterior do cineasta, a produção ainda assim tem contundência de sobra, e analisa com lirismo e melancolia as difíceis escolhas de um relacionamento abalado por diversas pressões. De cara, sucesso em festivais pela Ásia, e uma indicação sólida das riquezas por vir.

Dancing in the Dust também serviu para evidenciar a rara (porque verdadeira) marca autoral de Farhadi. Escrevendo todos os seus roteiros e controlando cada aspecto das filmagens, o cineasta sempre pôs muito de si, de sua visão sobre os conflitos humanos, em suas obras, e com uma coerência que faz pensar no Federico Fellini da primeira fase, ou em Ingmar Bergman – como estes, o persa pode dar a impressão de fazer sempre o mesmo filme, mas, a cada investida, sai-se com um novo e atordoante exame dos enganos de nós todos.

Seu filme seguinte, se não foi um salto, confirmou a coerência do seu cinema. Linda Cidade (Shahr-e ZibaI, 2004) carrega no tom e mostra a crescente complexidade dos roteiros do iraniano, ao narrar a busca aflitiva de um ex-presidiário (Babak Ansari) por derrubar a sentença de morte de seu ex-colega de prisão, Akbar (Hossein Farzi-Zadeh), num percurso que, a cada desvio, expõe mais fragilidades dos envolvidos. Novo triunfo em premiações, mas mais importante, em retrospecto, por iniciar a parceria com Taraneh Alidoosti, a fenomenal atriz que rodaria três filmes com o diretor.

Na evolução de Asghar Farhadi, Fireworks Wednesday (Chaharshanbe-Soori, 2006) é o ultimo passo na cristalização de um cinema próprio, peculiar. Mais sofisticado como arte cinematográfica – da câmera ágil de Hossein Jafarian à montagem virtuosística de Hayedeh Safyari, especialmente na sequência final –, e ainda mais intenso no conteúdo – a verdadeira guerra familiar testemunhada pela empregada Roohi (Alidoosti) após uma acusação de adultério –, Fireworks enfim chamou a atenção do Ocidente para o cinema de Farhadi. Em meio ao esfriamento do entusiasmo, do lado de cá, pelos filmes iranianos, e às atribulações políticas, do lado de lá – o então presidente, Mahmoud Ahmadinejad, fechava o cerco sobre o seu colega Jafar Panahi –, a recepção positiva de Fireworks garantiria o financiamento para o próximo trabalho do diretor – e é aqui que a história realmente interessa.

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Depois da maturidade e excelência técnica de Fireworks Wednesday, Procurando Elly (Darbareye Elly, 2009) era mais do que aguardado. Mesmo assim, ninguém estava pronto para a voltagem terrificante da obra.

Partindo das férias improvisadas de um grupo de amigos numa casa à beira-mar, o filme desenrola um novelo terrível de erros e malfeitos, após o desaparecimento da personagem-título (Alidoosti mais uma vez). Trazendo à frente a bela Golshifteh Farahani (mais conhecida no Ocidente como a enfermeira que vive um caso com Leonardo DiCaprio em Rede de Mentiras) e Peyman Moaadi, que repetiria a parceira em A Separação (2011), Procurando Elly inaugura a fase madura de Asghar Farhadi, concentrando todo o engenho técnico e narrativo de seus filmes anteriores na potencialização dos dramas e dilemas dos personagens. O roteiro é também de uma agudeza rara: implacável no exame das intenções sob as máscaras, sucessivamente afáveis, angustiadas e aflitas dos protagonistas, ele desmonta qualquer pretensão de controle, sobre si mesmo ou sobre os outros. Selecionado pelo Irã para concorrer ao Oscar, o filme foi esnobado pela Academia, mas ganhou o Urso de Prata no festival de Berlim e marcou presença em todas as listas de melhores do ano de críticos lúcidos e responsáveis. Ainda assim, Farhadi seria capaz de mais.

A Separação (Jodaeiye Nader az Simin, 2011) é o mais provável candidato a obra-prima numa das carreiras mais intrigantes do cinema recente. O seu roteiro mais atilado, mercurial, demolidor – mas também o filme mais sutil e delicado do cineasta até aqui. Todos transbordam de malícia, segredos ocultos, angústia – todos, portanto, demasiadamente humanos, mas nem por isso menos brutais, rancorosos e infelizes, no sufocante mundo adulto testemunhado pela jovem Termeh (Sarina Farhadi, filha do diretor). Acossada pela separação dos pais e pela trama complicada armada entre o pai (Moaadi novamente) e a empregada Razieh (Sareh Bayat), após um incidente envolvendo esta última, A Separação é mais uma brutal exumação de erros do passado, de implicações terríveis no presente. Talvez a definitiva.

Uma curiosidade sobre o filme, que as enciclopédias virtuais omitem, é que A Separação foi exibido em primeira mão no Brasil aqui mesmo, em Manaus. Inscrita na mostra competitiva do saudoso Amazonas Film Festival, a obra arrancou aplausos dos presentes e foi a grande campeã do evento, iniciando a sua trajetória global de premiações, que culminaria no Oscar de Melhor Filme Estrangeiro – o primeiro para um filme iraniano – em 2012. O rapaz de Isfahan, afinal, chegou bem longe.

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Depois de A Separação, qualquer filme teria de ser um anticlímax – mas, se O Passado (Le Passé, 2013) é um, então estamos bem. A primeira produção internacional do diretor, rodada na França (que parece ser o destino preferido dos cineastas persas), com a glamourosa (e grande atriz) Bérénice Bejo, é a mais explícita evocação de culpas remotas em sua filmografia. Desta vez, agregando ao seu mosaico de temas o problema da imigração na Europa, subordinada (ou não seria Farhadi) ao turbilhão íntimo dos personagens, O Passado é mais uma amostra impressionante de ensemble, com cada elemento do filme no lugar exato, e o elenco, mais que todos, se superando nas diversas reviravoltas da trama. Um casal em divórcio (os casais sempre saem mal nos filmes de Asghar Farhadi), uma tentativa de recomeço, um suicídio: todos os elementos estão armados para que o diretor desmonte, mais uma vez, o autocontrole e as ilusões de polidez e civilização que fazemos de nós mesmos – em troca, ele nos dá uma experiência cinematográfica sublime, num plano bem além de quase todos os seus colegas de ramo.

Aliás, isto é o que mais intriga em Farhadi: desde sempre, o diretor é de uma sensibilidade e apuro incríveis, duas qualidades que a maioria dos artistas do filme passa a vida buscando e não encontra. Sempre presente, atual, e também além do tempo, com suas epifanias humanamente imperfeitas, infelizes, desesperadas, mas nunca desesperançosas, o diretor iraniano é um dos artistas que mais tem a dizer sobre o nosso tempo – e que privilégio que ele seja isso, do nosso tempo. Leitores do futuro, fica a torcida para que haja um Asghar Farhadi entre vocês. E nós, façamos justiça ao nosso.