Voltemos aos anos 1980 um pouco, caro leitor: era uma época em que não havia internet, mas a África já passava fome e existiam pop stars. Essa é a proposta do documentário A Noite que Mudou o Pop, produção da Netflix dirigida por Bao Nguyen que reconta a história da gravação da canção “We Are the World”, um momento que consistiu na reunião inédita dos maiores astros da música em prol de uma causa humanitária. O documentário tinha tudo para ser só uma peça de nostalgia feita para quem viveu aquela época. Felizmente, a abordagem do diretor inclui curiosidades, momentos de conflito entre os artistas, indo além das superficialidades.

A Noite que Mudou o Pop começa em 1984, quando, após o concerto Live Aid concebido pelo roqueiro Bob Geldof, começou a circular entre nomes chave da música pop a ideia de gravar uma música em prol de aliviar o sofrimento humanitário na Etiópia – a ideia até foi batizada inicialmente de “Projeto Etiópia”. O principal entrevistado é Lionel Richie, que, na época, estava na crista da onda. Ele conversou com uns amigos – gente como o lendário produtor Quincy Jones e os astros Harry Belafonte e Michael Jackson – e assim a ideia começou a ser posta em prática.

É um documentário de histórias, contado com entrevistas atuais intercaladas com imagens da época. Ritchie reconta como foi de Belafonte a ideia de incluir artistas negros na iniciativa, especialmente Jones como produtor. E numa época em que não havia e-mails e todos os artistas de destaque tinham suas agendas concorridas, foi Jones e o gerenciador musical Ken Kragen quem conseguiram reunir todo mundo – bem, todos menos o Prince, que vira ele próprio uma historieta legal dentro do filme.

Ritchie também conta umas histórias legais de excentricidades de Jackson – os dois foram os compositores da música. O rei do pop tinha uma cobra, por exemplo, que um dia quase matou Ritchie de susto…

O VERDADEIRO TESOURO

Em pouco mais de uma hora e meia – e com um bom ritmo, nunca cansativo – Nguyen e seus montadores dão ideia do tamanho da façanha que foi reunir todos esses astros, e da gravação em si, que ocupa a segunda metade do documentário. Não deixa de ser fascinante ver o processo acontecer: a música foi gravada com todos juntos, na madrugada de 21 de janeiro de 1985, logo após a maioria dos artistas terem saído da entrega de prêmios do American Music Awards.

E é nessa segunda metade de A Noite que Mudou o Pop, com registros da noite de gravação, que se concentra o tesouro do documentário. Vemos o exercício de loucura que foi como fazer cada voz se encaixar no coro, a tietagem mútua, a contribuição fundamental de Stevie Wonder, um momento engraçado com Cindy Lauper, uma dificuldade com Bruce Springsteen, e o momento “o quê que eu tô fazendo aqui?” com o Bob Dylan. São momentos sem preço, nos quais temos acesso a essas personalidades, seus métodos de trabalho e visões artísticas.

A Noite que Mudou o Pop é um documentário sem firulas narrativas ou invencionices: conta sua história de modo direto e, principalmente por causa disso, acaba sendo bastante efetivo. No final, o que dá a tônica é a emoção de Lionel Ritchie, mesmo depois de tantas décadas. Pode-se pensar o que quiser de “We Are the World” como música e seus méritos artísticos, mas é inegável o seu legado, pois a canção serviu ao seu propósito – arrecadou muito dinheiro para ajudar gente faminta – e depois muitos grandes artistas pop passaram a se sentir mais à vontade para se engajar com temas humanitários e políticos.

Uma coisa é certa: depois desse filme, você nunca vai ouvir “We Are the World” do mesmo jeito quando estiver zapeando por alguma rádio ou Spotify uma noite dessas. Afinal, o filme consegue realmente convencer de que, na noite em que essa música foi gravada, algo especial aconteceu.