Devo começar dizendo que não tenho memória afetiva pela história de Ariel. Inclusive, revi recentemente “A Pequena Sereia”, de 1989 e tentei entender como alguém pode ter como princesa favorita uma adolescente que abre mão de seu reino e talento para lutar pelo amor de um homem que viu apenas uma vez. Não faz sentido pra mim e segue sem fazer. Perceba que fui assistir ao filme dirigido por Rob Marshall (“Memórias de uma Gueixa”, “Caminhos da Floresta”) sem grandes expectativas, no entanto, as atualizações feitas por David Magee (“As Aventuras de Pi”) deram um toque mais consistente à trama. 

Acompanhamos Ariel (Halle Bailey), filha mais nova do rei Tritão (Javier Bardem), que sonha em viver entre os humanos, e para isso faz um acordo com Úrsula (Melissa McCarthy), uma bruxa do mar. O objetivo é viver na superfície e impressionar o príncipe Eric (Jonah Hauer-King). A escolha feita pela jovem sereia faz com que ela troque sua bela voz por pernas humanas. 

Adensamento da trama

“A Pequena Sereia” replica todas as cenas da animação, no entanto, aprofunda questões que ficaram soltas anteriormente. Quem ganha com isso é o príncipe Eric e, consequentemente, o romance entre ele e Ariel. Se antes, ele representava apenas um homem por quem a princesa sereia abre mão de sua vida, desta vez, conhecemos um pouco mais sobre sua história pessoal e a relação que tem com o mar desde a sua tenra idade. Curiosamente, desta ligação procede seu drama pessoal: não poder voltar a velejar a fim de priorizar a burocracia do palácio. 

O desejo de encontrar a moça que lhe salvou das águas se torna uma representação de sua paixão pela vida marítima. A música “Wild Uncharted Waters”, escrita especialmente para esse filme por Lin-Manuel Miranda, aborda seus sentimentos e anseios – em uma vibe “Bet on it” de “High School Musical” -, deixando evidente o paralelo entre o amor de uma vida e seu novo amor. Interessante como o roteiro se preocupa em construir sua personalidade ávida pela exploração dos mares e de novos lugares, uma vez que já sabemos que Ariel também possui as mesmas inquietações. 

Enquanto na animação, o romance entre eles era arquitetado por uma dança que se passava em diferentes ambientes, neste filme é dado oportunidade para que construam uma conexão ainda que em pouco tempo. Assim percebemos o quanto eles têm em comum, seja por conta da coleção de objetos que recuperam, do prazer de descobrir novos mundos e até mesmo pela obsessão que tem um pelo mundo do outro. Por isso, quando o primeiro ministro insinua que a moça que ele procura pode estar bem a sua frente, não soa esquisito. 

Outra nuance que ajuda a adensar a trama é a do núcleo fundo do mar: chama a atenção a citação que fazem como os naufrágios prejudicam a fauna e flora subaquática, pena que não passa de um mero momento. A trama revela ainda o motivo que levou Tritão a proibir o contato com o mundo humano. O personagem se torna mais compreensível do ponto de vista do espectador e também um pai menos rígido e mais atento a filha. É fácil entender suas restrições a Ariel, uma vez que a percepção desses personagens tornam a tolice da protagonista mais tangível. 

Percepção visual

Quem também chama atenção é o visual de “A Pequena Sereia”. Lembro que o trailer não me animou muito justamente porque achei o mar escuro, mas isso não ocorreu durante a exibição. Parte se deve a forma como a fotografia de Dion Beeb (“Chicago”) nos introduz na imensidão marítima, como se realmente tivéssemos fazendo um mergulho e descobrindo novas paragens. Claro que tudo ganha mais vida durante a execução de “Under the sea”, mas a ambientação do núcleo de Tritão é realmente belíssimo, tanto que nem sentimos falta de não haver um passeio pelas estruturas do castelo, como acontece na animação. 

Outro acerto nesse sentido é a escolha de trazer sereias multiétnicas que complementam a ideia de imensidão marítima e também a visão fantasiosa em torno de suas figuras. Gosto da escolha de coloração das barbatanas, que traz mais uma adição ao que já conhecíamos desse universo, e me lembrou, de certa forma, a versão da Barbie dessa fábula. 

Não dá pra falar sobre a percepção visual sem mencionar o trabalho feito com o trio de animais que acompanha Ariel: Linguado (Jacob Tremblay), Sabichão (Awkwafina) e Sebastião (Daveed Diggs). Linguado é quem mais sofre da pressão de tornar o filme mais próximo da realidade, o peixe é totalmente inexpressivo, tanto que perde muitos dos momentos decisivos que participava na trama. Em contrapartida, Sebastião é o que mais consegue ser normalizado dos três, o carisma de seu personagem e de seu intérprete são fundamentais para que ele possa ocupar o espaço total de conselheiro do rei e da princesa do mar sem que fique estranho do ponto de vista realístico. 

O valor de uma protagonista negra

O grande trunfo deste live-action, sem dúvida, é a escolha de Halle Bailey para protagonizá-lo. A atriz transmite no olhar a inocência e a tolice que uma pessoa com 16 anos tentando fazer escolhas que julga serem sábias emite, além disso há algo de muito poderoso em vermos uma sereia negra fazendo bobagens para viver uma história de amor durante o período das grandes navegações.

Por dois motivos, o primeiro que é exultante ver uma mulher negra vivendo uma personagem mítica sem ser objetificada ou sexualizada, sem contar que ocupa o papel principal dessa história sendo a fonte de anseios, preocupações e de condução narrativa. Por fim, esta mulher, embora silenciada em certo período da vida, é colocada no mais alto posto feminino – o de rainha – no momento em que muitas, na vida real, eram escravizadas. 

Enquanto assistia o filme, via a mãe de Eric, a rainha (Noma Dumezweni) em exercício – outra mulher negra em posição de poder – fiquei pensando no quão incrível seria se o príncipe também fosse interpretado por um ator negro. 

Embora eu siga sem compreender como “A pequena sereia” é uma princesa querida por boa parte do público, compreendo a importância de Halle Bailey em viver a personagem. É a oportunidade de várias meninas se identificarem com o que assistem, a possibilidade de nos vermos finalmente alcançando lugares que sonhamos. É tão importante e influente quanto termos uma série sobre uma rainha negra inglesa na era georgiana (sim, estou acenando para Queen Charlotte). 

“A pequena sereia” ao mesmo tempo em que traz os pontos positivos e negativos de sua animação, consegue oferecer novas perspectivas para que a produção se torne mais redonda e sem muitos vácuos narrativos. O live-action merece uma chance.