Como explicar a experiência de ver, em uma sessão até agora única, um filme de um pioneiro do cinema, dado como perdido há mais de 100 anos, que retrata justamente a região onde você vive – e você até está dentro de um dos cenários da obra?  

Sobretudo, como explicar que “Amazonas, o Maior Rio do Mundo”, a peça publicitária de Silvino Santos, datada de 1918 e recuperada neste ano, apresente em um microcosmo tão sucinto as vastas belezas e contradições de uma região do Brasil que, um século depois, só testemunhou o seu agravamento?  

RESGATE DO ESQUECIMENTO 

Exibido no Teatro Amazonas no dia 29 de dezembro de 2023, marcando o retorno da obra à cidade onde Silvino Santos passou grande parte da vida, a obra é uma sobrevivente da negligência brasileira que conseguiu, por acaso, chegar até nós. Apresentado com sucesso no país em 1918, o filme foi levado para a Europa nos anos seguintes e arrancado das mãos de Santos: suas imagens foram reproduzidas em cópias sem qualquer menção a seu realizador e, terminado o circuito europeu, o trabalho caiu no esquecimento.  

Ou quase: valentes pesquisadores do audiovisual amazonense, como Selda Vale da Costa (cujo livro “Eldorado das Ilusões” é uma referência crucial sobre a carreira de Silvino Santos e o contexto da produção deste filme) e Sávio Stoco, que escreveu uma tese de doutorado com um capítulo sobre o filme que se supunha perdido, mantiveram “O Maior Rio do Mundo” vivo e preservaram vários de seus fotogramas.  

Acontece que uma dessas cópias ilegais de Rio jazia protegida em um acervo da Cinemateca de Praga, capital da República Tcheca, cidade que promove um festival dedicado ao cinema mudo. A instituição entrou em contato com Stoco, que avaliou as imagens e confirmou a suspeita: era mesmo o filme perdido de Santos, completo (67 minutos) e em ótimo estado de conservação. Como tal, também não trazia qualquer referência ao cineasta português-amazônida: o título tcheco havia sido trocado para “As Maravilhas do Amazonas” e, afora as sequências, o filme compõe-se apenas de letreiros, todos também em tcheco.  

Então “Amazonas, O Maior Rio do Mundo” ressurge com um valor histórico e documental incalculável, mas o que ele diz a quem assiste hoje? Muita coisa – para o bem e para o mal. 

PEÇA DE PROPAGANDA DA AMAZÔNIA 

Foto: Arquivo Národní filmový, Praga.

Algo que fica claro nos primeiros minutos do longa é que “O Maior Rio do Mundo” não é exatamente um documentário. A produção foi encomendada a Silvino pouco depois da criação da agência Amazônia Cine-Film, parceria entre o Governo do Estado e a classe empresarial com o intuito de divulgar o nome e as imagens da região amazônica, e a obra é uma peça de propaganda, pura e simples. Trata-se de uma longa apresentação das riquezas exploráveis da região amazônica, embalada como uma “jornada” por paisagens exóticas, situações perigosas e encontros com “selvagens”, que deveria abrir os olhos de empreendedores e cativar seus familiares.  

O segmento inicial impressiona: imagens do rio interminável, de densos igapós, das grandes árvores. Incidentalmente, é possível discernir a nuca de um barqueiro indígena em um canto do quadro. Como essas imagens foram feitas? Como o equipamento enorme, pesado e frágil da época foi transportado com essa aparente placidez pelas paisagens?   

O percurso de Silvino abrange alguns dos principais centros de atividade comercial da época: Santarém, Belém, Itacoatiara, Manaus e Putumayo, na Amazônia peruana. Seus letreiros dão breves informações sobre a situação apresentada e a riqueza da vez: “o território é rico em recursos naturais”, “a carne do peixe-boi é bastante saborosa”; “as árvores dão muitas cabaças, que os nativos decoram com habilidade”; “Manaus é o centro da indústria madeireira”. Às vezes até arriscam algum humor: “não é recomendável tomar banho aqui” vem logo antes de uma cena com uma aglomeração de jacarés; “usar calças também virou moda” antecede imagens de indígenas vestidos (por sinal, os homens indígenas do filme aparecem todos cobertos; as mulheres, não).  

Tirando a descrição das riquezas, os intertítulos são pouco informativos, e parecem mais preocupados em enfatizar o exotismo ou o aspecto de aventura das filmagens. Alguns são até incongruentes: mais de um letreiro fala em “indígenas”, sem que a cena seguinte apresente nenhum. O valor de “Amazonas, O Maior Rio do Mundo” reside inteiramente nas imagens – e mesmo estas podem desapontar: os planos são quase sempre estáticos, fotografias discretamente movimentadas, com quase nada do dinamismo e da elaboração visual que, já então, pós-”O Nascimento de uma Nação”, se praticava.  

Silvino também faz uso de recursos de edição então em voga, como íris, cortinas e fades, mas de forma arbitrária, um truque que eventualmente aparece para realçar os tableaux. Mas como reclamar quando há tantas imagens quase indescritíveis, pelo que elas preservam e são capazes de descortinar para nós? 

PRENÚNCIO TRÁGICO 

Tudo, no filme, é uma janela fascinante para esse passado estranho, remoto, mas ao mesmo tempo profundamente familiar: o Largo de São Sebastião, cercado por um Centro tranquilo, quase deserto; as maravilhosas cenas de dança ritual em uma aldeia; os processos de extração e preparo da borracha e do algodão; a movimentação do gado nas fazendas do Pará (um dos letreiros mais sinistros do filme apregoa: “gado é riqueza”); a árdua caça do peixe-boi; a igualmente árdua coleta da castanha-do-pará.  

E o mais comovente: o elemento humano, que, como o barqueiro indígena do início, teima em sobressair das imagens estetizantes de Silvino. O pioneiro realizava um trabalho encomendado pelas elites e dirigido a elas – na cena mais reveladora do filme, ele enquadra trabalhadores carregando um navio com castanhas-do-pará, enquanto, logo acima, dois homens ricos, impecáveis em seus ternos brancos, sorriem satisfeitos – mas hoje, à luz do sangramento da floresta amazônica e das profundas desigualdades da vida na região, esse convite soa como o prenúncio de uma tragédia.  

Se Silvino almejava vender a crescente prosperidade e o potencial rentável do país das Amazonas, é a vida dura dos homens e mulheres às margens o aspecto mais intrigante das imagens hoje. Essas pessoas, marcadas pela rudeza das condições de vida, captadas em esforços intermináveis ao longo do filme, ou tendo de exibir o exotismo de suas feições e adereços corporais (como os indígenas “selvagens” perto do segmento final, que, os letreiros dizem, “há apenas 50 anos decoravam suas casas com os crânios de seus inimigos”) são os amazônidas que ergueram a economia responsável por tornar possível “O Maior Rio do Mundo”, e que chegam a quem assiste, 105 anos depois, como o elemento mais vivo do filme. Não poderíamos estar mais distantes de “Os Sertões”, de Euclides da Cunha (cujo livro sobre a Amazônia foi intitulado, significativamente, “À Margem da História”), mas, à sua maneira, “Amazonas, o Maior Rio do Mundo” também permite entrever a terra, o homem e a luta.