Dirigido por Gil Baroni (“Alice Júnior”), “Casa Izabel” é um filme que se constrói por meio de subversões. Nada é o que parece ser e quando você acredita que uma premissa será estabelecida, na sequência, percebe que foi uma mera sensação. Isso oferece camadas a produção e nos faz imergir no que há de melhor nela: o mergulho entre o real e a fantasia.

O filme se passa em 1970, período marcado pela ditadura militar, em um aparente refúgio da realidade que se instaurara no país. Nesse recanto, homens estabelecidos e abraçados pela alta sociedade encarnam mulheres com vertentes artísticas dentro de uma visão de luxo, exuberância e elitismo. Desta forma, eles esquecem o mundo exterior para dar voz ao devaneio e as insurgências de suas almas concretizadas na busca por personificação de figuras específicas como novelistas, atrizes, cantoras e presidentas.

Um mundo misógino

O curioso, nesse cenário, é que, mesmo que todos se tratem no feminino e esse seja um ambiente para se livrar das amarras masculinas, a misoginia predomina em cada interação, cômodo e vestimenta. Ela se estampa quando, por exemplo, as outras recriminam a feminilidade alheia e afirmam não existir mulheres em posição de poder – como a governante eleita de um país -, cabendo a elas apenas colocações ligadas a sensibilidade.

Ainda que este pensamento, em certo grau, emule a concepção do período, me rememora algumas falas da professora Ann Kaplan sobre o papel feminino no cinema predominantemente masculino. Entre elas, destaco a que afirma que as personagens mulheris ocupam signo, significante e significado que representam o inconsciente masculino. Longe de mim proclamar que esta foi a intenção de Baroni, mas não deixa de estar presente em “Casa Izabel”. Afinal, como questiona uma das matronas, eles interpretam viver no corpo de mulheres que nunca olhariam na rua, que em seu poder secular não permitiriam que existissem. O que a fantasia nos diz sobre a percepção de caráter?

Três linhas de frente

“Casa Izabel” se constrói, contudo, em várias frentes. O roteiro de Luiz Bertazzo – que também assina o roteiro de “Alice Júnior” – parte de três situações que caminham em paralelo e subvertem compreensões e intencionalidades. De um lado. acompanhamos os cross-dresser, que se vestem de mulheres, mas caminham marchando como homens, praticam atividades relacionadas socialmente a ala masculina como a caça e tecem comentários misóginos trajados de humor ácido.

Há ainda Dália (Laura Haddad), que além de ser governanta da mansão, está à procura do filho Gabriel. As angústias e ações expositivas da personagem nos embarcam no contexto político do período em que se passa a narrativa. Por fim, acompanhamos Izabel (Luís Melo): longe de seus dias de glória, se esconde das outras em um quarto no porão, explorando e mantendo uma relação passivo-agressivo com Leila (Jorge Neto) e se alimentando do passado.

O roteiro oferece a cada personagem seus próprios dramas enquanto a fotografia de Renato Ogata tenta contar a história por meio das janelas da casa de Izabel. Embora a cenografia seja excelente e nos deixe em suspensão do que ocorre na vida dessas pessoas fora daquele sítio, a multiplicidade de dramas enfraquece a narrativa de “Casa Izabel”, uma vez que as histórias poderiam dar vazão às discussões latentes, mas criam novas perspectivas de linhas de frente que não serão abordadas.

É preciso salientar, no entanto, que Baroni é eficaz em criar a atmosfera precisa para a trama. A música constante e os ângulos de câmera entoam um ar de suspense e mistério que acompanham o filme até o último take, as descontinuadas tramas também auxiliam a intensificar essa sensação, que auxilia no estabelecimento de uma conexão com o presente, dada as feridas não cicatrizadas pela ditadura militar.

“Casa Izabel” cria um mundo isolado provocante, com personagens que suscitam curiosidade, visto o pouco ou nada que sabemos sobre elas fora dali, e tem uma presença magnética em tela cheia de complexidades e questões a serem exploradas, mas, ao mesmo tempo, esses mesmos motivos conduzem a uma corrente de sabotagem que busca nos relembrar constantemente seus papéis como homens conservadores pertencentes a classe média. Decisões que seguem enriquecendo a produção de Gil Baroni.