Abro esta crítica para assumir, que diferente da grande maioria do público e da crítica, não sou fã de carteirinha da primeira parte de “Duna”. Uma das minhas maiores críticas a Denis Villeneuve em relação a adaptação cinematográfica do clássico romance de Frank Herbert, foi ter criado uma obra cansativa e insípida em alguns aspectos da narrativa. A impressão é que ele se esforça tanto em atingir um tom solene e minucioso em apresentar o universo de Duna para reverenciar o livro, que acaba por falhar em encorpar a trama com uma dramaturgia mais emotiva, principalmente nos conflitos e dilemas morais dentro da saga. Situação esta que Peter Jackson em “Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel” equilibrou muito bem na sua adaptação cinematográfica.

Até reconheço toda a harmonia técnica impecável com destaque para concepção visual dos cenários, figurinos e atmosfera dos planetas. Villeneuve neste aspecto é um senhor diretor no domínio da mise-en-scène na construção das imagens. Apesar de bonito de se ver, a primeira parte era bem arrastada no seu cinema épico, muito por sacrificar os elementos do universo para focar excessivamente no drama do protagonista Paul Atreides (Timothée Chalamet), deixando de lado o desenvolvimento dos demais personagens e que me fez não ficar empolgado pelo trabalho de 2021.

A boa notícia é que “Duna: Parte 2” oferece um épico intimista que faltou ao anterior, como também acerta no ritmo para compor uma dramaturgia sólida, fortalecendo a riqueza do material de Herbert. Ele começa de onde o primeiro terminou: com Paul e sua mãe grávida, Lady Jessica (Rebecca Ferguson, um dos destaques do primeiro e deste segundo), se unindo ao povo Fremen, e juntos, planejarando a vingança contra a casa Harkonnen.

Uma continuação de mais fácil compreensão

Algo que salta aos olhos logo no início desta continuação é que ela é bem mais fácil de compreensão que o original, que por sua vez, tinha a árdua tarefa de apresentar os conceitos, a mitologia do universo e os diversos personagens juntamente com os embates raciais surgidos entre eles.

Sem esta exigência, “Duna: Parte 2” se mostra ambicioso em oferecer uma experiência cinematográfica clássica, no que tange aprofundar os elementos políticos e espirituais da narrativa de Herbert para desta forma mergulhar em alta velocidade no contexto dramático que um filme épico merece.

Os personagens do original – Paul, Jessica, Chani (Zendaya), Harkonnen (Stellan Skargard) e Stilgar (Javier Bardem) – funcionam bem dentro da trama e os “novos” que surgem nesta sequência como Feyd-Rautha (Austin Butler), Princesa Irulan (Florence Pugh) e Lady Margot (Léa Seydoux) conseguem ser distintos e impactantes mesmo em participações menores, ao manterem uma singularidade nos dilemas morais que servem muito bem ao propósito da trama principal focada em Paul.

Neste sentido, Villeneuve se coloca bem à vontade para adaptar algo denso e complexo ao mesmo tempo que tem liberdade artística para mudar passagens e situações do romance de origem, além de inserir temáticas corriqueiras do seu cinema: o peso que os conflitos familiares e da paternidade exercem nos seus protagonistas, geralmente deslocados em seus papéis na esfera íntima e que são questionados por elementos sociais (e até mesmo políticos) da sua existência no campo moral.

Em “Duna: Parte 2” isso se faz presente na relação de Jessica e Paul, na qual a figura materna ganha um destaque maior, repleto de ambiguidades, transitando-a entre uma personagem de sabedoria e manipulação na jornada de autoconhecimento do filho. É interessante que neste retrato no universo de Herbert, o filme apresente uma maior autonomia para destacar este lado feminino a partir das Bene Gessirit e suas formas de agir.

Villeneuve filma este contexto através de imagens sombrias e revela um espaço de manipulação que provém não de situações diretas e sim daquilo que não está presente nos planos que estamos vendo, uma presença sentida de fora, mas que se faz presente nas decisões tomadas na história. Enquanto os personagens masculinos estão sempre no campo de batalha colocando a mão na massa para destruírem uns aos outros, são as mulheres nos bastidores desta estrutura bélica que se organizam para manter intacto o seu poder dentro de uma sociedade masculinizada e assegurar o futuro das próximas gerações. Este aspecto é citado muito bem no diálogo da Reverenda Madre (Charlotte Rampling) com a princesa, em que ela explica a função principal das Bene que é de “planejar”.

Além de incorporar este ponto de vista feminino inovador ao material base, essa continuação revela um olhar contemporâneo interessante ao mostrar que a batalha pela especiaria em Arrakis é um mero mcguffin para ressaltar que a manipulação das crenças por meio do uso da religião como instrumento para a chegada ao poder, algo presente nos discursos de Jessica, Stilgar e de Irulan, é perigoso na construção do messias e da sua própria lenda, já que se apropria do fanatismo cego das pessoas a partir da fé dos fiéis

A partir destes conceitos, Villeneuve revela que o impacto da consciência e da manifestação da verdade (um dos temas essenciais do seu cinema) são fundamentais para discutir as tradições religiosas e sistemas políticos alimentandos pela perspectiva religiosa do fundamentalismo messiânico, refletindo (e muito bem explorado) na peça chave dramática principal que rege esta segunda parte: o conflito de Paul Atreides em assumir seu papel de líder religioso em uma Guerra Santa.

Um legítimo épico na ação visual com algumas derrapadas

Se esta Parte 2 lida bem com os conflitos morais e tudo que envolve este contexto político-religioso, fica nítido o quanto Villeneuve deixa de lado a reverência e a necessidade de legitimar a obra de Herbert para ter uma liberdade maior de fazer um filme mais “descontraído” e que se espera de um blockbuster de ficção cientifica hollywoodiano.

Temos um trabalho com mais humor e vida, longe do aspecto sisudo do primeiro. A própria montagem condensa melhor os momentos contemplativos excessivos no primeiro (algo próximo do cinema de Terrence Malick) e facilita que as mudanças de cenário e as apresentações de novos personagens sejam feitas com muita segurança dando força dramática vários conflitos do próprio enredo. Certas subtramas que acontecem no planeta dos Harkonnen e de Arrakis ganham ótimos arcos, entre eles o de Feyd-Rautha.

Nota-se que a própria direção também se mostra relaxada para fazer um épico frenético que impressiona pela quantidade de situações, conciliando com habilidade o material de carga dramática detalhista e intimista com ação de guerra grandiosa, ambos facilitados pelo cuidado técnico de som e efeitos visuais que denotam um grande amor e respeito pelo livro.

Neste contexto, uma outra crítica que eu tinha em relação ao anterior e que aqui Villeneuve corrige: os confrontos entre as casas Atraides e Harkonnen ganham momentos emblemáticos, longos e bem envelopados em cena. Uma pena que neste contexto, sinto que o diretor ainda sente temor de sujar às mãos, sobretudo na ação explícita, evitando o tom subversivo que ele incorporou neste sentido em “Sicario” e “Os Suspeitos”. O próprio desfecho da chamada “disputa pelo trono” é meio estranho e mais econômico do que o necessário – frustrante por ser curto -, dando sensação que edição teve que sacrificar muita coisa para não elevar ainda mais a metragem do filme, colocando diversas situações de qualquer jeito.

Junta-se a isso ao relacionamento amoroso entre Paul e Chani que poderia ter sido melhor explorado, sem contar que os diálogos expositivos deixam a relação entre eles quase infantil (e também um romance adolescente piegas), bem distante da maturidade exigida dentro dos arcos de cada personagem. Há também as chamadas conveniências narrativas com personagens aparecendo e desaparecendo de cena sem grandes explicações, sendo a maior delas o retorno de Gurney Halleck (Josh Brolin) e o desperdício de desenvolvimento de alguns deles como Rabban (Dave Bautista).

Com um saldo bem positivo para se curtir que o seu antecessor, “Duna: Parte 2”, ressalta que dentro das engrenagens do cinema hollywodiano, ainda é possível entregar produtos com o selo “blockbuster” de qualidade para agradar tanto a massa de entretenimento quanto aquela que busca algo complexo dentro da sua reflexão alegórica em projetos como este.

Se de um lado, Villeneuve hoje se mostra uma das vozes ativas em conciliar os elementos mais conceituais do cinema de autor com o de entretenimento pop – e também de dominar a ficção científica na sua pura essência – pelo outro, sua segunda parte pode indicar alguns caminhos dignos a serem aplicados aos filmes de super-heróis que se encontram saturados no marcado atual cinematográfico.