Duna, o filme dirigido por Denis Villeneuve, começa com o protagonista acordando de um sonho, e tem alguém falando sobre um planeta, um império e uma tal de especiaria… A sensação é de ser jogado num universo alienígena e ela perdura por praticamente todo o filme. É uma obra assombrosa, do ponto de vista de design e estilo. Mas ela também mantém o espectador à distância, o tempo todo. Villeneuve fez um filme a que se admira, mas nunca se consegue entrar de verdade.

Talvez essa confiança no aspecto visual e estilístico do filme decorra do fato de que, em termos de história, o longa não traz quase nada novo para o público. Mas aí se pode relativizar a culpa dos cineastas: afinal, Duna, o livro escrito por Frank Herbert e publicado em 1965, é o tipo de obra que se tornou tão influente, tão canônica dentro do gênero ficção-científica, que praticamente todo mundo pegou algo dele ao longo das décadas, quando não roubou mesmo. Para muitos espectadores, a história de Duna pode lembrar muito Star Wars, por exemplo. Mas é Star Wars que veio de Duna, e não o contrário. Outros podem achar que é um Game of Thrones no espaço – mesmo princípio. E o livro já foi adaptado para o cinema antes, como o desastroso cult dirigido por David Lynch lançado em 1984. Duna de Lynch era como um acidente de carro fascinante, uma bagunça monumental daquelas que se torna marcante em Hollywood. Ainda assim, é um filme visto e discutido há quase 40 anos…

Enfim, aqui Villeneuve e o estúdio Warner Bros. adotaram a estratégia que deu certo, por exemplo, ao adaptar o último Harry Potter e It: A Coisa, de Stephen King: pegaram livros longos e complicados e os dividiram em dois filmes. Esta é a “Parte 1” de Duna, como é indicado logo na abertura e nela vemos o jovem Paul Atreides (vivido por Timothée Chalamet) e sua família, enredados no conflito com os vilanescos Harkonnens pela posse do planeta desértico Arrakis, onde é produzida a “especiaria”, a mais valiosa – e alucinógena – substância do universo. O planeta é chamado pelos nativos de Duna e em meio às areias do deserto, existem criaturas gigantescas e um povo que acredita numa profecia…

FICÇÃO CIENTÍFICA MINIMALISTA

O enredo em si não é tão complicado, porém, é preciso construir todo o universo em que se passa a trama e explicar vários dos seus conceitos – foi aí que o filme de Lynch se deu mal, recorrendo a vários monólogos, pensamentos e exposição direta para o público e, ainda assim, não explicava direito. Aqui, percebe-se que os roteiristas Villeneuve, Jon Spaiths e Eric Roth se esforçam para deixar tudo o mais direto possível. Isso não os livra de vários momentos de exposição bem transparente – para explicar várias coisas, o jovem Paul assiste a uns “bibliofilmes” ou então recebe conselhos e informações de outros personagens.

Também fica rapidamente claro para o público quem são os heróis e quem são os vilões – só o planeta sombrio dos Harkonnens já nos indica que eles são do mal, de maneira não muito diferente do pessoal do lado sombrio da Força em Star Wars. Aliás, Paul também possui um tipo de Força, aqui chamada de “A Voz”, um poder que ele ainda não consegue dominar e lhe foi transmitido por sua mãe, Lady Jessica (Rebecca Ferguson).

Ainda assim… É muita coisa para expor e o filme leva praticamente toda a sua primeira metade explicando quem é quem e o que cada personagem quer. Então, por todo esse segmento do filme, Duna se confia nos visuais, nos atores famosos e na trilha sonora de Hans Zimmer para manter a atenção do público.

E até consegue, de uma maneira curiosa. Porque Duna parece mais um filme “de arte” do que um blockbuster tradicional. Surpreendentemente, não há tanta computação gráfica, ao menos no início. A abordagem é a mesma que Villeneuve imprimiu no seu Blade Runner 2049 (2017), a de fazer uma ficção-científica minimalista. A direção de arte, os figurinos e a estética geral da obra impressionam mais do que os efeitos, que só vêm a dominar mesmo a partir da segunda metade.

BELEZA PLÁSTICA E CONCEITO ACIMA DE TUDO

E assim como em Blade Runner 2049 ou mesmo em A Chegada (2016), o tom é frio. É o estilo do diretor, que parece hesitante em abraçar o aspecto mais pop de sua narrativa – é muito fácil imaginar como o filme poderia ser mais colorido e empolgante, à la Star Wars, e Villeneuve resiste a esse caminho.

Sua intenção é clara: elevar o gênero, fazendo algo mais adulto. Porém, é uma pena que esses pareçam ser os únicos caminhos do cinema moderno: ou se faz algo estilo Marvel, colorido e bem-humorado, ou se parte para algo 100% sério e auto importante como aqui. Será que não poderia haver um meio-termo?

Afinal, em determinado momento de Duna, o protagonista sofre perdas pessoais importantes e Chalamet dá de ombros e parte para a próxima. Se ele não se importa, por que nós deveríamos? Por causa disso, por esse aspecto de colocar a beleza plástica e o estilo acima de tudo, Duna parece um estranho comercial de perfume, filmado numa paisagem alienígena: muito bonito, mas estéril e sem vida.

 O PREÇO DA PERFEIÇÃO

O que não significa que seja ruim: afinal, o filme é hipnotizante e os cineastas não perdem de vista a grande alegoria da história. Como toda boa ficção-científica, a história aborda um tema real num contexto fantasioso. Duna é sobre o imperialismo, sobre um bando de gente branca e rica brigando pelos recursos naturais de um mundo e os habitantes deste local – geralmente pessoas de cor – se ferram no fogo cruzado. Villeneuve e Zimmer até reforçam esse paralelo com uma trilha com coral árabe para o povo Fremen, os habitantes de Arrakis. É muito fácil ver a especiaria como o petróleo, e os “heróis” como colonialistas invasores.

É também uma história de “white savior” (salvador branco), como várias outras do tipo: afinal, Paul é mais um “escolhido” do cinema, que vai se aliar aos Fremen para derrotar o mal e eles o veem como uma figura messiânica. Por alguns indícios plantados aqui, parece que os cineastas vão subverter esse clichê na segunda parte, e esse é outro aspecto de Duna que o diminui um pouco: trata-se de uma obra incompleta e, além disso, algumas decisões do roteiro no terceiro ato também deixam a desejar.

É um filme estranho: tem um elenco fabuloso, incríveis valores de produção e uma história interessante. E é inegavelmente bom, um prodígio de cinematografia pelas lentes de Greg Frasier e de direção de arte pelas ideias incríveis de Patrice Vermette. Tecnicamente, é épico e perfeito, o Lawrence da Arábia (1962) da ficção-científica. E reflete o livro e consegue contar sua complexa história de modo efetivo – bem, metade dela, pelo menos.

Porém, essa perfeição parece cobrar um preço. Em Blade Runner 2049, a frieza e a falta de humanidade eram essenciais à história. Já em Duna… Bem, é difícil se importar de verdade com Paul Atreides e sua família. Luke Skywalker era um cara mais legal e acessível.

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