Muita gente em determinado momento da vida começa a refletir sobre o passado e a olhar para a época da infância com saudade, como um período em que a vida era melhor e mais simples, em comparação com o presente, pelo menos. Por mais que essa idealização do passado seja falsa, é também um sentimento muito humano no fim das contas, afinal, ser adulto é difícil, o mundo é complicado e sentimos falta de uma época em que as coisas pareciam mais simples. Esse sentimento, a boa e velha nostalgia, virou produto e foi cooptado pelas grandes empresas e hoje alimenta a indústria cultural de uma forma nunca antes vista, mas este não é o objetivo deste texto; é só uma constatação.

O objetivo aqui é falar sobre Como Era Verde o Meu Vale, o vencedor do Oscar de Melhor Filme de 1941 – bateu Cidadão Kane – e dirigido por um dos maiores cineastas de todos os tempos, o americano John Ford, que também venceu o Oscar de direção por ele. É uma história nostálgica, na qual os eventos de uma infância são revistos por um narrador adulto. E embora seja baseado em livro do autor galês Richard Llewellyn, é em parte também alimentado por lembranças do próprio diretor: antes de ser John Ford, ele nasceu John Martin Feeney, em 1894 no Maine, filho de imigrantes irlandeses que passaram por dificuldades em sua terra natal antes de partirem para viver o sonho americano.

Como Era Verde o Meu Vale conta a história da família Morgan. Pelos olhos do pequeno Huw (o adorável Roddy McDowall, na sua estreia no cinema), vemos a comunidade que mora, uma pequena cidade no País de Gales, logo abaixo da mina de carvão que sustenta o local. É pelos olhos do menino que vamos ver o convívio dos pais (Donald Crisp e Sarah Allgood) com seus vários irmãos e a irmã Angharad (Maureen O’Hara, que aqui trabalhou pela primeira vez com Ford e firmaria com ele uma parceria por vários filmes).

BELEZA IDÍLICA

Os momentos mais bonitos se concentram no início: a beleza da direção de arte – que recriou a vila galesa em uma encosta californiana, afinal, filmar na Europa era perigoso durante o período da Segunda Guerra Mundial – é realmente impressionante, transmitindo a sensação de um mundo idílico na virada do século. E claro, o trabalho de fotografia de Arthur Miller – também vencedor do Oscar – é superlativo, com um uso incrível de luz e sombras nas cenas interiores e um foco profundo que serve à encenação de Ford, que apreciava cenas com muita gente e de família reunida. Já houve algum diretor com mais capacidade para dispor seus atores em cena, dentro do plano, de forma organizada e equilibrada para criar belas composições? Eu não sei de outro. Talvez Kurosawa, mas divago…

Enfim, ao longo da história, Ford nos mostra o distanciamento na família por causa das mudanças sociais – os filhos querem se unir ao sindicato para fazer valer seus direitos na mina, enquanto o pai os xinga de “socialistas”. Feito logo depois de As Vinhas da Ira (1940), que basicamente terminava falando do comunismo em uma história em meio à Grande Depressão nos Estados Unidos, é mais um filme do diretor com forte consciência social, embora aqui ele trabalhe menos com essa temática do que no longa anterior.

Também vemos Huw ficar doente e fazer amizade com o pastor da cidade, vivido por Walter Pidgeon. Depois ele vai à escola, e depois… É um filme de narrativa episódica, devido ao próprio formato de lembranças da infância, o que o limita um pouco, do ponto de vista narrativo. Não sentimos de forma tão poderosa os dramas da vida de Huw e seus familiares, porque o roteiro fica pulando de situação em situação. Como Era Verde o Meu Vale ainda comove, mas não tanto quanto poderia, e isso ocorre principalmente por conta deste fator.

Dentro dele, porém, existe uma triste e forte história de amor, entre o pastor e Angharad. Eles se amam, mas pelas circunstâncias não conseguem ficar juntos. É nessa subtrama que acontece o momento mais famoso do filme, a cena do casamento de Angharad com outro homem, na qual um mero acaso, o vento inesperado que faz voar o véu na cabeça de Maureen O’Hara acaba representando visualmente a confusão da personagem e adicionando uma estranha poesia à cena. Veja, ou reveja, esse belíssimo momento, abaixo:

SENTIMENTO AGRIDOCE

Muita gente hoje torce o nariz para Como Era Verde o Meu Vale porque derrotou Cidadão Kane no Oscar – aliás, derrotou também outro grande clássico, O Falcão Maltês (1941) de John Huston. Existe essa percepção de que o longa de John Ford foi visto como uma opção segura em face da controvérsia de Kane e toda a campanha negativa feita pelo magnata da imprensa William Randolph Hearst contra a obra de Orson Welles. Vale lembrar também que, das quatro vezes em que foi premiado com o Oscar de Diretor, essa foi a única vez em que uma obra de Ford ganhou também como Melhor Filme.

E de fato, Como Era Verde o Meu Vale não é tão poderoso ou incrível como Kane. Também perde para O Falcão Maltês. E não é, nem de longe, o melhor filme de Ford. Talvez não entre nem em um top 10 dele.

Mas é um filme de John Ford, um dos maiores de todos os tempos, e isso já o coloca numa posição especial. É um melodrama, mas de alguma forma o toque discreto do diretor evita que se torne piegas ou manipulador. E é baseado em uma noção nostálgica, mas temperada pela visão do diretor. Curiosamente, ao longo da história, vemos mais coisas ruins do que boas acontecerem à família de Huw. A doçura daqueles momentos iniciais contrasta com a tristeza que toma conta do filme quando ele se aproxima do final. Quem pode esquecer uma cena no desfecho envolvendo o elevador da mina? É mais um belíssimo momento da direção de Ford e da fotografia de Miller.

Mesmo assim, o narrador acaba prezando todas as memórias da sua infância, as boas e as ruins. Como Era Verde o Meu Vale tempera a nostalgia com um sentimento agridoce e no fim valoriza as vidas de seus personagens, com seus bons e maus momentos. É um filme muito humano, acima de tudo. E quem dera todas as obras que apelam para a nostalgia fossem tão bem realizadas quanto esta.