“Como a sociedade me vê?”
“Encarcerados”, documentário dirigido por Claudia Calabi, Fernando Grostein Andrade e Pedro Bial, está menos interessado em responder a essa pergunta do que em escancarar as contradições de um sistema que não recupera e que tem vítimas que vão além das que estão presas. Adaptação do livro “Carcereiros”, de Drauzio Varella, o filme mostra a rotina e as histórias de agentes penitenciários que trabalham em cadeias masculinas e femininas em São Paulo.
A despeito da narração dramática de Milhem Cortaz, que joga um tom quase que de conto de horror à narrativa, o documentário se preocupa em apresentar os seus personagens principais como pessoas que têm sonhos quebrados. A promessa de estabilidade do concurso público se torna um pesadelo na vida real.
No filme, vemos entrevistados que lutam ou lutaram contra os próprios impulsos. É o caso de Aly Muritiba (“Ferrugem”): hoje diretor – e recentemente premiado no Festival de Gramado por “Jesus Kid” -, ele é ex-carcereiro e tem um relato forte sobre o “limiar perigoso” em que estava andando por conta do trabalho e que foi determinante em sua decisão de seguir outro caminho.
O peso de uma rotina dentro do sistema prisional é sentido em cada depoimento. Muritiba, por exemplo, reforça que o agente tem múltiplos papéis dentro daqueles muros. “Você tinha que ser o ouvido, o ombro e, às vezes, o cassetete”, diz, em determinado momento.
“O caco do sistema”
A câmera acompanha os agentes em atividades rotineiras, como o abrir e fechar das celas. Uma das palavras mais repetidas pelos entrevistados é “medo”. Um deles resume: “a cadeia tem vários tipos de medo”. Medo do primeiro dia, medo de rebelião, medo principalmente do lado de fora. Um deles reconhece que o receio é maior quando está fora do presídio do que no dia a dia, dentro do complexo penitenciário.
E se Muritiba aparece como alguém que conseguiu sair daquele local, outros não têm os mesmos privilégios. Enquanto alguns reproduzem com a voz os sons que não vão mais esquecer (‘a faca entrando na costela’), outros não tiram da mente os cheiros que impregnam a rotina (‘o sangue’, ‘o cheiro da cela, de sabão em pó misturado com detrito’). O documentário mostra os efeitos daquela vida justamente por meio dos contrastes dos discursos: uns contam de amigos que passam por rebeliões e hoje estão em casa, interditados, outros defendem a truculência de outros tempos, sob o argumento de que “tinha disciplina”.
“A maior violência é o descaso”
Nesse sentido, é importante a participação de Drauzio Varella, cujo depoimento é quase que um guia do espectador. A experiência notória no sistema prisional, sobretudo no Carandiru, não passa batida. O massacre ocorrido no complexo em 1992 é ponto de destaque no documentário, que parte dali para uma relação quase que didática desse fato e da corrupção do sistema com as origens do Primeiro Comando da Capital, o PCC.
O filme também é cirúrgico ao lembrar que muitas vezes se precisa falar o óbvio – no caso, a forma como o sistema pune de forma mais permanente as mulheres. Ao mostrar a cadeia feminina e relatos de carcereiras como a que recorda, com culpa, o dia em que uma criança perguntou para ela sobre a prisão da mãe. A ligação que nasce quase que forçada quando uma detenta passa 12 horas com a agente, enquanto dá à luz, é um relato para dar mais uma vez vazão aos argumentos de como os métodos de encarceramento são falhos com o ser humano.
Não há como fugir da problemática daquele sistema. Agentes como Roney Nascimento – que morreu no ano passado e a quem “Encarcerados” é dedicado – reforçam a importância da ressocialização. No entanto, é quase que um consenso que aquele lugar não dá condições para que isso ocorra.