E começam a aparecer, em Manaus, os primeiros filmes da temporada de premiações do cinema – aqueles que, durante as próximas semanas, deverão disputar a notoriedade junto ao público e a conquista das paixões inflamadas da crítica, até chegarmos àquela famosa (para alguns, infame) estatueta dourada, no dia 24 de fevereiro.

A largada é dada por As Viúvas, o novo trabalho do diretor britânico Steve McQueen, de Shame e 12 Anos de Escravidão. Um exercício prazeroso no filme de roubo, esse subgênero que já nos deu tantas pérolas então (O Segredo das Joias, Um Dia de Cão) e agora (O Plano Perfeito, Em Ritmo de Fuga), mas do tipo que McQueen, conhecido até aqui pelos dramas sisudos, nunca havia chegado perto.

E quer saber? O britânico produziu um dos trabalhos mais envolventes do cinema americano em 2018, mesmo sem roçar as alturas emocionais de 12 Anos, seu grande trabalho anterior, e também apesar do roteiro previsível, com direito à clássica cena em que o vilão pára o que estava fazendo para explicar suas motivações. Saiu uma espécie de Tela Quente de luxo – com direito a um elenco fenomenal, liderado pela sempre impecável Viola Davis (ganhadora do Oscar, no ano passado, por Um Limite entre Nós), além do tom pró-diversidade, que é a marca da produção mais interessante nesses anos sombrios para a política e a sociedade.

O título da obra (que, por sinal, recria uma minissérie de sucesso da TV inglesa da década de 80) é explicado nos minutos iniciais: quatro homens tentam levar adiante um roubo que dá errado – tragicamente errado, com todos indo pelos ares, numa aparente (e extravagante) emboscada da polícia. Sem desejar frustrar mais revelações surgidas no correr dos acontecimentos, estimado leitor, diremos apenas que Veronica Rawlings (Davis), a viúva do líder do bando, Harry (Liam Neeson, criando um improvável mas bem-vindo elo com Busca Implacável – a cultura pop se realimentando e expandindo em direções surpreendentes) herda a dívida do marido morto, a ser cobrada em doses crescentes de sadismo pelo chefão do crime Jamal Manning (Brian Tyree Henry, da série Atlanta) e seu capanga mais sanguinário, Jatemme (Daniel Kaluuya, de Corra!). A Jamal interessa não só reaver o dinheiro que lhe foi roubado por Harry, mas usá-lo para derrotar, na política, o mimado herdeiro Jack Mulligan (Colin Farrell, de True Detective), cuja família controla o distrito onde todos residem. Veronica é mordaz e expedita, mas nem a sua argúcia conseguiria reverter, sozinha, a situação que Harry lhe deixou em mãos. Razão pela qual ela recruta duas outras viúvas daquele assalto, Linda (Michelle Rodriguez, da série Velozes e Furiosos) e Alice (Elizabeth Debicki, de O Grande Gatsby), além da motorista Belle (a inglesa Cynthia Erivo).

De forma surpreendente, para um diretor do qual só conhecíamos a desenvoltura para o drama, Steve McQueen constrói um filme pulsante, que parece energizado pela renovação recente do cinema americano de temática racial (não por acaso, Kaluuya, de Corra!, e Henry, de Atlanta, duas criações diretamente ligadas a essa nova onda do audiovisual negro, estão no filme – Spike Lee também recebeu e amplificou essa descarga elétrica com o fabuloso Infiltrado na Klan), mas também pela admiração, insuspeitada até aqui, do cineasta pelos códigos e valores do action film. McQueen não vacila no ritmo e na tensão – a sequência de abertura, que intercala a cândida despedida dos maridos com o desespero galopante do assalto que dá errado, ou o grande roubo no final, onde pequenos detalhes saem do controle e produzem lances de felicidade e tragédia, são compactos, precisos, atilados. Enquanto As Viúvas fica nesse plano da ação pura, tudo funciona à perfeição. Mas, como sói acontecer, ele não se mantém sempre nesse pique.

Há também o texto. E é aí que As Viúvas encontra os seus maiores problemas. O desenvolvimento dos personagens é previsível. O próprio desenrolar da trama acumula viradas mais do que conhecidas pelos admiradores da ação. Atores tão bons quanto Kaluuya e Farrell ficam presos a desempenhos histriônicos, com papéis que beiram a paródia, de tão unidimensionais. E, para um filme que busca dar o protagonismo às mulheres, é interessante constatar como ele não passaria no famoso teste da cartunista americana Alison Bechdel: presas a situações criadas por homens, as mulheres de As Viúvas (vide já no título) têm de se bater contra as imposições masculinas quase até o final. Nada que se compare ao feminismo frouxo e artificial de um A Garota do Trem, por exemplo, mas eu esperava um trabalho mais surpreendente de Gillian Flynn, a romancista/roteirista responsável pelo incrível Garota Exemplar, de David Fincher (2014).

Não faltam, porém, desempenhos brilhantes do elenco – Viola Davis é o destaque óbvio, mas os trabalhos contidos de Debicki e Rodriguez, além da participação deliciosa de Robert Duvall como o pai de Jack, Tom, também ganham muitos pontos para o filme – e reflexões interessantes, nas entrelinhas, sobre corrupção política (epa!) e desigualdades sociais e raciais, suficientes para colocar As Viúvas como mais um empolgante exemplar do cinema capitaneado por grandes artistas negros, um sopro vital que tem deixado Hollywood bem mais interessante nesses últimos anos.