Na primeira década dos anos 2000, os multiplexes do mundo foram, por um bom tempo, assombrados por pôsteres assustadores que mostravam pés decepados e outros horrores nos seus salões de entrada. E dentro das salas, se podiam ver cenas com gente usando máscaras de porcos e armadilhas elaboradas de tortura que levavam pessoas a morrerem em espetáculos dantescos. Foi a época da franquia Jogos Mortais: entre 2004 e 2010, o estúdio Lionsgate lançou sete filmes dela, um pontualmente a cada ano, e eles levaram a sanguinolência e a tortura a um novo patamar no cinema de horror para as massas. O mundo vivia a ressaca da guerra ao terror pós-11 de Setembro, guerra esta travada com muita tortura, e esses filmes refletiam um pouco disso, mostrando sangue em excesso e as reviravoltas rocambolescas do sempre criativo maníaco Jigsaw, transformando o veterano ator Tobin Bell em novo ícone do gênero.
Porém, assim como o Orkut, o MySpace, as bandas de nu metal e várias outras coisas do começo dos anos 2000, talvez fosse melhor deixar a franquia lá naquela época. Em retrospecto, só o primeiro filme, concebido por Leigh Whanell e James Wan, ainda resiste hoje como um bom, não ótimo, suspense. Quem ditou o resto da franquia, que se tornou cada vez mais intrincada e exagerada, foi o fraquinho Darren Lynn Bousman, diretor dos Jogos Mortais 2, 3 e 4. Ainda assim, a nostalgia nubla todas as lembranças, não é mesmo? Jigsaw e suas armadilhas ainda têm fãs, o que mantém a Lionsgate interessada em ressuscitar a saga. A primeira tentativa foi com Jogos Mortais: Jigsaw (2017), e ela passou em brancas nuvens há alguns anos. Agora, chega este Espiral: O Legado de Jogos Mortais para tentar de novo, porque se há algo comum a todas as franquias hollywoodianas de terror é o fato delas se recusarem a morrer.
Espiral é uma mistura de recomeço com continuação, dessas que vem se tornando moda em Hollywood: honra o que veio antes e dá sequência, mas o faz com novos personagens e situações que podem partir para novos rumos. Curiosamente, a ideia para o filme veio do seu próprio astro, o ator e comediante Chris Rock, fã da franquia: na história, Rock vive o detetive Zeke Banks, cujo pai Marcus (Samuel L. Jackson) foi uma lenda no departamento. Zeke, no entanto, se tornou um pária ao investigar alguns companheiros. A situação dele piora quando chega um novo parceiro (Max Minghella), e os dois começam a investigar uma série bizarra de assassinatos de policiais que parecem indicar que há um novo maníaco copiando o modus operandi do finado Jigsaw.
CHRIS ROCK RISÍVEL
O filme até começa chutando a porta com um policial preso em uma armadilha nos trilhos de um trem e a língua presa numa armação. É intenção dos roteiristas e do diretor Bousman, de volta ao comando, sinalizar que Jogos Mortais voltou e com gosto. O problema é que parece que gastaram toda a imaginação e a vontade de chocar logo na abertura. O resto do filme é até um pouco contido e as armadilhas bem menos inspiradas dessa vez. A sensação é de realmente estarmos vendo obra de um imitador, de alguém que decidiu copiar o velho Jigsaw e seus discípulos, mas sem o talento para a coisa.
Quando a própria especialidade da franquia parece já estar desgastada, é sinal de problemas para todo o resto. A começar por Rock em uma atuação bem fraca. Ele é um ótimo comediante, mas não convence como detetive e nas cenas em que tenta demonstrar comoção ou medo, suas caras e bocas são constrangedoras. Ele também fala alto várias vezes, uma das suas marcas registradas, e por causa disso ficamos esperando a hora em que seus colegas de cena vão cair na risada. Mesmo assim, Minghella, Jackson e o resto do elenco não se saem assim tão melhor.
‘ÀS VEZES, A MORTE É MELHOR’
Tanto Minghella quanto Jackson se mostram no piloto automático, mas parece que estão combinando com a direção de Bousman. É incrível, mas depois de tanto tempo fazendo thrillers, o sujeito ainda não sabe construir nem sustentar qualquer tensão. É até curioso rever os filmes antigos e notar como são chatos, sem tensão, e Espiral vai pelo mesmo caminho, talvez até pior. Bousman não consegue trabalhar com atores, não sabe criar atmosfera e se limita, como sempre, a filmar boa parte do longa em galpões onde – ele acredita – vai haver tensão devido à presença de sangue. E claro: não deixa de incluir algumas referências aos filmes anteriores, como a cena com um serrote, para satisfazer os nostálgicos. O roteiro fraquinho também sabota seus esforços: lá pelo meio, dá para adivinhar quem é o assassino, por mais que a musiquinha conhecida da franquia tente contornar a sensação de anticlímax no final.
Essa nova tentativa de ressuscitar Jogos Mortais acaba sendo até mais fraca que a anterior. Se a franquia deixou mesmo um legado, aparentemente foi o de ampliar as fronteiras do que se podia mostrar, em termos de violência, na tela, para as plateias dos multiplexes que poderiam escolher entre um espetáculo sangrento, um longa de super-herói ou uma animação com a família. Não se pode dizer muito desses filmes além disso. O que não impede Hollywood, claro, de tentar, de novo e de novo, como doutores Frankensteins eternamente em busca da reanimação de cadáveres já putrefatos. Porém, como já disse o Stephen King lá no livro O Cemitério, “às vezes, a morte é melhor”. Se essa for mesmo a melhor ideia que tiveram para reviver o espírito da franquia, melhor deixar ela quieta lá na sua tumba.