Há algo de mórbido, estranho, maléfico na relação de Beverly e Elliot (Jeremy Irons), gêmeos idênticos e igualmente geniais no que tange ao corpo humano e à sexualidade. Desde cedo, eles se interessam pelo corpo feminino e suas particularidades. Adultos, tornam-se famosos em fertilizar mulheres na busca pela tão sonhada gravidez. Mas existem muito mais camadas nesta famosa dupla.

David Cronenberg é um dos diretores mais peculiares e interessantes do cinema. Sua mistura de thriller psicológico, violência e crises existenciais fazem parte de uma longa e diversificada filmografia que incluem clássicos como “A Mosca” (1986), “Mistérios e Paixões” (1991), “eXistenZ” (1999), “Marcas da Violência” (2005) e “Senhores do Crime” (2007), algumas pérolas de uma carreira iniciada em 1966.

O mergulho na mente humana e nas contradições, neuroses, surtos extrapolam o limite do convencional, passeando por diversos gêneros. Cronenberg coloca em voga os instintos mais violentos e absurdos do ser humano e, talvez por isso, deveria ser um diretor mais celebrado – eu mesmo tenho que me debruçar mais em sua obra.

JOGO CONSTANTE

Em “Gêmeos – Mórbida Semelhança”, um dos seus clássicos, não é diferente. Adaptação do livro “Twins”, de Bari Wood e Jack Geasland, que, por sua vez, é baseado em um caso real ocorrido nos anos 1970 em Nova York, o terror psicológico coloca os irmãos Mantle no centro de uma discussão importante: a dolorosa necessidade do outro.

Idênticos na fisionomia e diferentes em personalidade, Elliot é o charmoso, carismático e com uma boa lábia, enquanto Beverly é o introspectivo, tímido e reservado. Ao longo da vida, eles dividiram tudo: carreira, fama, fortuna, renome e mulheres. Sempre naquela velha brincadeira de irmãos gêmeos idênticos de ficar com as mesmas pessoas, cada um se passando pelo outro. Tudo muda, porém, com a chegada da atriz infértil Clair Niveau (Geneviève Bujold); o que, a princípio, era apenas mais uma conquista de ambos, torna-se uma paixão visceral de Beverly.

E nesse jogo de paixões, conquistas e carreira, ele se perde. Torna-se dependente de medicamentos para suprir essa paixão avassaladora correspondida, mas, que perde o controle quando ela tem que viajar para gravar um filme. Elliot toma às rédeas da situação em controlar os instintos do vício do seu irmão. Porém, eles são iguais, como siameses e decidem adentrar no vício para poder sentir o que o seu irmão sente, afinal, são apenas um só desde que foram concebidos. E o desastre acontece: em certo momento não sabemos diferenciar quem é quem, pois, estão absorvidos na destruição.

O MÉDICO E O MONSTRO

Com uma maestria ímpar, Cronenberg estuda esses dois corpos em um, nesta brutalidade desenfreada em que um necessita do outro para sobreviver. Penso que a obsessão ao corpo feminino e a fertilidade dos Mantle está aliado ao fato em serem responsáveis por conceber novas versões deles mesmos em outros corpos, algo como o médico e o monstro. Todavia, tal genialidade é colocada em cheque quando há uma paixão envolvida, afinal, até os gênios sucumbem ao amor – com isso, aqui, os dois se violam caindo em desgraça. Em uma cena bastante forte, Beverly sonha que são siameses e Clair está no meio entre eles. Um pesadelo? Não, uma realidade: há uma morbidade simbiótica entre eles.

Essa insanidade dos gêmeos visceralmente interpretados por Jeremy Irons volta merecidamente aos holofotes depois que a Amazon decidiu transformar o filme em minissérie lançada no início do ano. Trocando os gêneros, as gêmeas agora são interpretadas por Rachel Weisz. Quanto ao filme? Uma obra-prima no seu estado mais bruto do termo.